Já te escrevo tarde. Mas, na tradição da Igreja, a celebração do batismo prolongava-se por oito dias, até ao domingo seguinte, e mesmo mais além. Era o tempo da mistagogia, do caminho dos mistérios. E, além disso, ainda terei de te escrever por muito tempo, pelo menos hoje e amanhã (Lc 13, 32).
Diz Mourão: «Aceitai a questão aberta que é cada um dos vossos filhos, alargai a roda: o mundo não é apenas a vossa eira (…) Testemunhai do invisível, da paz chegando, da esperança que é uma virtude da noite, mas que é uma virtude crítica. Alegrai-vos com os vossos filhos que são a seta que anuncia um tempo novo, imprevisível». A carne dilata-se, os dias ganham horas (ou condensam-se). Não se trata de um esforço espiritual, de uma corrida: não é fruto da nossa vontade, ou do nosso desejo espiritual. É alguém que irrompe: pede aceitação, acolhimento. É mais difícil. Espero que não respires, desde a mais tenra infância, um ar envelhecido, pessimista. Sei que sim. Espero que os teus pulmões consigam renovar esse ar. Sei que sim.
Agostinho tem um sermão aos seus fiéis nos quais diz: «Para vós sou bispo; convosco, sou cristão. Aquele é nome do ofício recebido; este, da graça; aquele, do perigo; este, da salvação» (Serm. 340, 1). Poderia re-escrever livremente: para ti sou pai, contigo sou irmão. Aquele é nome de vocação recebida, este de graça; aquele, de perigo, este de salvação. Com o batismo, entras numa comunidade de iguais em dignidade, na comum vocação e na comum graça (LG 32). O sacramento conduz a uma realidade espiritual profunda: a comum igualdade e vocação humana, da que Jesus é o Senhor, o Kyrios.
Invocamos o profeta Daniel, “o meu juíz é Deus”. Recordo da sua história a juventude corajosa, os cânticos das criaturas e da perseguição, onde nada há já a apresentar a Deus senão o louvor da criação e a confiança na misericórdia. E a visão de um filho de homem. Talvez seja um dos livros que mais influenciou o Novo Testamento – e conhecêmo-lo tão pouco. De novo, a abertura a um tempo novo, imprevisível, no seio de uma história cinzenta, rotineira, circular.
Mas lembro-me, também, de Daniel Faria: há pessoas que o conheceram, e que conhecem bem a sua poesia. Talvez tu venhas também a conhecê-la. «Sei que existes e multiplicarás / A tua falta. / Somarei a tua ausência à minha escuta / E tu redobrarás a minha vida.» Serás capaz de aceitar a falta, a sombra, o silêncio e a tristeza melhor do eu? Gostaria que sim.
Não sei se algum dia invocarás este momento. Era nossa obrigação abrir-te a ele. Não te poderíamos deixar de fora da roda. Não será para ti um fardo, um dever moral, uma prática social. Possivelmente, a tua recriação deste dia será, de um modo radical, diferente do que eu imagino. Espero saber aceitar, e encorajar. A tua irmã caminha à tua frente e a teu lado. A tua mãe e eu caminhamos à retaguarda. Nunca, de verdade, encontrarás em nós uma porta fechada: que essa seja a herança e o compromisso deste dia.
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