Qual o início – ou o princípio – da misericórdia? Será um projecto de santidade ou, pelo contrário, a sua ausência? Um breve excerto de André Louf, monge beneditino belga, a partir da sua reflexão sobre o percurso espiritual, a contrição e a liberdade. Boas leituras!
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Pouco a pouco, esse sentimento jubiloso de contrição passa a predominar na experiência espiritual. Desta ascese de pobreza – patientia pauperum – surge cada dia um homem novo. Todo ele é paz, alegria, benevolência, doçura. Ficará para sempre marcado pelo arrependimento, mas um arrependimento cheio de alegria e de amor que aflora em toda a parte e sempre, e que permanece como pano de fundo da sua procura de Deus.
Um homem assim já alcançou uma paz profunda, porque foi quebrantado e restaurado no seu ser completo, por pura graça. Mal se reconhece. Tornou-se diferente. Tocou de perto o abismo profundo do pecado, mas no mesmo instante foi precipitado no abismo da misericórdia. Aprendeu finalmente a depor as armas diante de Deus, a já não se defender diante d’Ele. Permanece assim desarmado e indefeso.
Renunciou a qualquer justiça pessoal e já não tem projectos de santidade. As suas mãos estão vazias ou não retêm mais do que a sua miséria, que ele se atreve a expor à misericórdia. Finalmente, Deus tornou-Se verdadeiramente Deus para ele. E nada mais que Deus. O que quer dizer: Salvator, Salvador do pecado. Está mesmo quase reconciliado com o seu pecado, tal como Deus Se reconciliou com ele.
Sente-se feliz e reconhecido por ser fraco. Já não anda à procura da sua própria perfeição: «Todos nós éramos como coisa impura, e os nossos actos de justiça como roupa imunda» (Is 64, 5). A sua justiça, não a possui senão unicamente em Deus. Não lhe restam senão feridas, mas tratadas e curadas pela misericórdia e desabrochadas em maravilhas. Não sabe senão dar graças e louvar a Deus, que está continuamente a actuar nele para realizar as suas maravilhas.
Para seus irmãos e próximos, tornou-se um amigo muito benevolente e doce. Compreende-lhes as fraquezas. Já não tem confiança em si mesmo, mas unicamente em Deus. Vive inteiramente dominado pelo amor de Deus e a sua omnipotência. É por isso que também se sente pobre, verdadeiramente pobre – um pobre em espírito – e próximo de todos os pobres e de todas as formas de pobreza, espiritual ou corporal.
É o primeiro de todos os pecadores – pensa ele – mas um pecador perdoado. É por isso que sabe conviver, como um igual e irmão, com todos os pecadores do mundo. Sente-se próximo deles, porque não se julga melhor do que os outros. A sua oração preferida é a do publicano, convertida em respiração pessoal e no pulsar do coração do mundo, o seu desejo mais profundo de salvação e de cura: «Senhor Jesus, tende piedade de mim, pobre pecador!»
E não lhe resta senão um único desejo: que Deus o ponha novamente à prova, a fim de descobrir cada vez melhor a sua proximidade; para abraçar, uma vez mais, a humilde paciência com um amor ainda maior: essa paciência e essa humildade que tanto o assemelham a Jesus e permitem que Deus renove nele as suas maravilhas.
André Louf, ‘Ao Ritmo do Absoluto’, Braga 1999
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