Tal como a Quaresma – com a sua memória do caminhar do Povo bíblico no deserto –, também o Tempo Pascal é, por excelência, um tempo de caminho, nos passos dos discípulos que reconhecem o Ressuscitado. Não será por acaso que o primeiro nome dado à comunidade dos seguidores de Jesus, no livro dos Atos dos Apóstolos, tenha sido «o Caminho» (At 9, 1).
Enraízado no património humano mais profundo, o gesto – exigente na sua simplicidade – de caminhar transporta-nos para a contemplação do que somos enquanto peregrinos.
«Há, porém, certas estradas que vale a pena percorrer,
como se agora que estão em ruínas
nos conduzissem a um destino certo»
Henry David Thoreau
O ato de caminhar poderá ser uma experiência espiritual profunda. Neste gesto corporal se expressa a humana inquietude da procura das fontes de sentido. A caminhada prolongada e resiliente é uma imersão corporal que muda a nossa relação com o espaço e com os outros. Somos seres bípedes, à procura de relação. O ato de pôr-se de pé, de estar a caminho, salvaguardou os nossos ancestrais na longa e sofrida escada da evolução. Só caminhando aprimoramos e reconhecemos a verdadeira força de sermos corpo no contacto com a consistência do solo, dos objetos ou de outros entes. De carro, de bicicleta ou de avião não temos tanto a perceção física do espaço, da aventura imersiva da nossa carne na carnalidade do “mundo da vida” (Husserl) e da abundância de elementos que tocam o nosso corpo sensível à alteridade.
A escultura O Homem que caminha (1961), do artista suíço Alberto Giacometti, fala-nos disso mesmo, do laço humano para o contacto com um horizonte inatendível e aberto ao extremo, em passos e passagens, no prazer da solidão que torna possível a autêntica hospitalidade de quem passa no caminho. Só o «caminhar permite este encontro físico com os elementos, com os odores e a luz, com os animais, com os habitantes também, aqueles que encontramos por acaso, aqueles que nos albergam, aqueles com quem partilhamos uma refeição» (Jean-Paul Kauffmann). Caminhamos por algo ou por alguém sempre mais importante do que o nosso próprio destino. Algo suscita esse desejo permanente de autotranscendência, a alcançar uma totalidade inabarcável que, por vezes, não sabemos nem podemos nomear. Pode acontecer que caminhemos pelo simples prazer de trilhar o caminho, sem fins nem objetivos delineados, apenas deambulando com os pés dos nossos pensamentos, desejos ou projetos.
As ruínas do caminho conduzem a qualquer e a nenhuma parte, como se o caminhar fosse um gerundivo imperfeito. Caminhar sobre ruínas é algo incomum. Ninguém deseja habitar a penumbra. Todos procuram a luz. Mas o excesso de luminosidade cega a possibilidade da epifania de um evento, o acolhimento da promessa que aí se anuncia. O escritor americano Henry David Thoreau escrevia que «a esperança e o futuro não residem nos campos relvados nem nas terras de cultivo, nas cidades nem nas vilas, mas nos impenetráveis pântanos de solo instável».
Mergulhar nestes solos instáveis suscita o exercício espiritual da mente e do corpo para afrontar o desconhecido, como os entes anónimos e invisíveis que de vez em quando nos visitam ou perturbam. Trilhamos sempre um caminho presente cujo destino não sabemos qual é. E não saber o que possa vir atemoriza-nos, e logo nós, sempre ávidos de segurança, de controlo e de possessão. Percorrer lentamente um longo caminho, por horas ou até dias, coloca-nos diante do Aberto, da infinita beleza do desejo de sermos novamente outros para alguém. Esta viagem do outro para si mesmo torna-nos incrivelmente indigentes, dispostos para receber a gratuidade de um abraço estendido, ou até para se reconhecer a si mesmo de uma outra maneira, menos artificial e mais autêntica. A atmosfera cultural atual é pouca dada à lentidão, à maturação do pensamento ou do próprio corpo. Por isso Michel Serres propõe o aforisma sapiencial «caminho, logo sou» ao invés do apodítico «penso, existo» de Descartes.
O tempo acelera, a atenção dispersa-se, a hiperconexão digital é omnipotente, a ambiência global é excitante. Aparentemente nada parece disposto a elogiar a lentidão do caminhar pensante, apenas agitação e convulsão em correspondência ao modo de ser dominante do utilitarismo. E todavia, há sempre um rasto, um vestígio, um traço, que cada um deseja deixar atrás de si. Há um desejo humano de pacificação, de decrescimento de egos inflacionados, de galgar o solo da terra firme, da matéria que resiste à passagem erosiva do não-ser. Caminhar é deixar rasto, é entregar-se por inteiro à lacuna de uma espera. Georg Simmel dizia que a «ruína é lugar da vida, de onde a vida se retirou». Ela é a morada da vida para quem a contempla, a solidez que dá a ver a luminosidade dos seres de um modo mais autêntico.
A ruína não é arruinamento nem desmoronamento, ou melhor, não chega a ser escombro. É outra coisa. É um memorial da vida a reconstruir. É uma casa mais luminosa que recebe e fecunda a própria luz. O inacabamento da ruína sobrepassa-nos na sua capacidade de resistir e de corporificar o tempo. Sabemos bem o quão os nossos ancestrais foram nómadas, carregando sobre si em cada estação o futuro, o peso da vida em devir. Sabemos quanto o exílio do povo bíblico foi a condição para a sua sobrevivência, a necessidade de saírem e de passarem além do seu confinamento territorial, a caminhar para novas e inesperadas alianças, para a troca comercial ou para o diálogo intercultural. É o próprio YHWHque lança o patriarca dos crentes, Abraão, na aventura do mundo, a sair da sua terra ou tribo para a confluência das gentes (cf. Gn 12, 1-7). Nenhuma raça ou povo subsiste fechado em si mesmo. Precisamos da diferença do outro, de uma alteridade que nos resista, que é o nosso espelho mais verídico, para fecundar e sustentar a nossa própria identidade. A realidade do êxodo (éksodos, passagem ou saída) está nos nossos genes humanos, é o legado dos nossos antepassados, a passagem dos passos que abre para o tempo habitado no lugar em que nos movemos e existimos.
É inerente à nossa condição humana, por segurança e instinto, estarmos adstritos a um território. O enraizamento é literal ou metafórico. Se é certo que precisamos de um lugar para repousar a fadiga dos pés, para saber de onde somos e donde vimos, também o desejo de vislumbrar outra terra nos faz sair desse repouso, a assumir novos êxodos existenciais. Vivemos nesta ambivalência de um corpo preso ao solo e de uma mente em divagação à procura de novos modos de habitar o mundo. O corpo enraíza a mente desenraizada e a mente desenraíza um corpo demasiadamente confinado ao que o confina. Simone Weil, filósofa do êxodo radical, diz-nos que o «futuro não nos traz nada, não nos dá nada, somos nós que, para o construirmos, temos de lhe dar tudo, dar-lhe até a nossa própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não temos outra vida, outra seiva, a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, que recriámos».
A esperança autêntica vive desta herança a recriar, desta memória afetiva dos eventos e dos seres que nos precederam, de acontecimentos outrora recebidos por outros. Não é viável caminharmos sozinhos, pois, mesmo quando caminho literalmente só, caminho com todos aqueles e aquelas que por ali passaram. Quando subimos ao cume de um monte é como se fizéssemos corpo daqueles que por ali já passaram. É como se tivéssemos necessidade de continuar essa caminhada inacabada, como o estafeta que entrega ao outro a chave do tempo imemorial. No espaço aberto da cidade coberta de partículas virosas, encontramos a nuvem do silêncio, a paciência do recolhimento, o cuidado de si e dos seus, a serenidade do deserto. Quem diria que todos experimentaríamos em tão curto espaço de tempo a mesma dor, a comum condição de sermos humanos?
No Segundo Testamento a realização do caminho é sempre plural (cf. Lc 24,13). Mesmo a solitária subida do Nazareno ao Gólgota é acompanhada por um punhado de pessoas solidárias. No caminho crucífero ou da Cruz há uma passagem de testemunho singularíssimo. Cada um caminha como é, mas todos sentimos a necessidade de o percorrer, de sair da zona confortável da nossa existência, para encontrar na ruína ou na catástrofe horizontes de sentido. Para o efeito, não haverá melhor emblema visual do que a pintura movimentada do filme O Moinho e a cruz (2011), de Lech Majewski, a partir do quadro Subida ao Calvário (1564), do pintor flamengo Pieter Bruegel. Nessa obra pictórica contemplamos Cristo a atravessar a multidão, quase invisível, um corpo em movimento para o «Leste do Paraíso» (John Steinbeck), passando por meio das casas e ofícios de humanos apressados e distraídos. Esta sua passagem por entre a vida quotidiana é a expressão que Deus também mora nas portas aladas da ruína.
Nestes últimos tempos o mundo vive confinado, em quarentena ou em isolamento quase monástico, como se cada quarto se convertesse na cela de um monge. Cumpre-se inesperadamente, agora, o adágio: «Tu, quando rezares, vai para o teu quarto e, fechando a porta, ora ao teu Pai em segredo. E o teu Pai, que vê no que está escondido, recompensar-te-á» (Mt 6,6). Tornou-se penoso caminhar, atravessar ou andar pelas ruas citadinas ou escalar as curvaturas incertas das apelativas montanhas íngremes. Neste entretanto muitos reconheceram o luxo da vida telúrica, a libertação do corpo expandido no trapear os montes altíssimos ou a contemplação das águas na margem de juncos perdidos ou até a sonoridade exuberante dos pássaros urbanos outrora despercebidos pelo rumor pulsante da pressa. Semanas e meses em que os humanos tiveram de aprender a caminhar com os pés agudos da mente, quase uma iniciação forçada à quietude, como forma de resistir à entidade invisível que em nós se hospedou sem pedir licença.
Só o exercício mental da progressão espiritual terá salvado a muitos da hecatombe sanitária de um corpo preso. Sem o saber, talvez estivéssemos a caminhar sobre ruínas ou sobre um pântano sombrio. Não foi precisamente Blaise Pascal que afirmou que «toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que consiste em não saberem ficar em repouso num quarto»? Uma parte da humanidade foi obrigada a reconhecer a sua incapacidade de viver circunscrita a um quarto ou à exiguidade de uma habitação urbana. Outrora aqueles que encontravam prazer na solidão, seja na leitura, no caminhar, na apreciação estética de uma pintura ou na contemplação monástica de uma cela eram incompreendidos. Hoje a perceção já será outra!
Caminhar é vital para reconhecermos a nossa própria humanidade, o humano que há em nós. Contra o suposto dito de Gustave Flaubert, «só se pode pensar e escrever sentado», Nietzsche afirma ironicamente num dos seus aforismas: «—Assim te agarro, ó niilista! A carne sentada é precisamente o pecado contra o Espírito Santo. Só os pensamentos em marcha têm valor». Há aqui uma apologia da deambulação ou do nomadismo como modo de ser vital, e não apenas como exercício corporal ou de mindfulness à Ocidente. Mas o filósofo alemão parece não ter vivido em tempos de confinamento social obrigatório, em que uma nesga de espaço era já um luxo para a nossa libertação. Não caminhamos só com os pés, também o espírito caminha, mesmo se o corpo vive sedimentado ou confinado no mais ínfimo espaço. É a pessoa toda que caminha e beneficia desse exercício espiritual quotidiano como preparação lenta para tempos de caos. O profeta gritava no deserto, o lugar do silêncio absoluto que dispõe para a auscultação da semicolcheia mais breve, para que se aplanasse o caminho d’Aquele que seria o futuro, a face visível de Deus invisível, o corpo de Deus. Daí o seu dito disruptivo: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14,7). Entrar no caminho, caminhando, é desejar a viagem, é receber o tempo do lugar como um dom inatendível, é caminhar «aos ombros dos gigantes» (Bernard de Chartres), não apenas para ver melhor, mas para sentir o toque da comunhão humana.
Como todo e qualquer exercício espiritual bem feito, peregrinando, perdemo-nos e reencontramo-nos, avançamos e recuamos, afirmamos e negamos, sorrimos e lacrimejamos, silenciamos e bradamos. É como se todo o caminho fosse um caminho dialético onde nos reconhecemos nos limites que a materialidade nos impõe. Como Thoreau não desejou caminhar num solo límpido, prefiro caminhar sobre ruínas, como anunciação de um tempo que nos lança e projeta no devir, como expressão da alteridade total com os que nos precederam e com os vindouros. A ruína é a expressão de uma fecundidade, de uma ferida aberta à espera de ser cuidada e sanada. Para Diane Scott, «seja na arquitetura, na política ou na arte, há uma multiplicação de ruínas, uma profusão de ruínas, uma fertilidade de ruínas». Há possivelmente toda uma filosofia ou teologia da ruína por fazer, e que poderá ser fecunda se aliada à ideia de peregrinação espiritual, à noite escura dos místicos como prova da progressão do espírito no Espírito, como redescoberta de Deus na transcendência do caos, como narração e prolongamento do gesto criador genésico.
Caminhar não é um simples desporto, um divertimento ou um prazer de fim-de-semana. É uma peregrinação às profundezas de si mesmo que nos abre à visitação do mistério. Frédéric Gros, no seu ensaio Caminhar, uma filosofia, escrevia que «caminhando, não encontramos nada melhor para andar mais devagar. Para caminhar, é preciso, primeiro, ter duas pernas. O resto é em vão. Ir mais depressa? Então, não caminheis, fazei outra coisa: rolai, escorregai, voai. Não caminheis. Porque caminhando, há apenas uma performance que conta: a intensidade do céu, a cintilação das paisagens. Caminhar não é um desporto». Caminhar é envolver-se, é uma intimação de si na perfuração da paisagem, é uma ascese que só uma mística da vida peregrina pode acolher como presença do mistério santo e absoluto que é Deus.
Falta-nos talvez uma mística cristã do caminhar no horizonte das linguagens contemporâneas, da condição crente peregrinante (do latim peregrīno, āre, viajar “em país estrangeiro”, “por país estrangeiro”) sobre as ruínas do tempo, da história e da vida do espírito, já presente no interior da tradição espiritual do cristianismo, desde a via monástica às formas de vida mendicantes ou itinerantes. A peregrinação (per+agri) significava isso mesmo, “caminhar pelos campos”, por trajetos longos e árduos para chegar ao lugar da promessa. Poderemos, a partir deste ente invisível manifesto no presente, descobrir a força espiritual do silêncio e dos gestos que nos qualificam enquanto seres de relação, sobretudo quando se assiste à fuga da urbs para o pagus?
Todos somos caixeiros-viajantes, sem morada permanente. A nossa passagem por aqui será sempre breve. Alguém dizia que somos essencialmente homo viator (Gabriel Marcel), em via para algo que nos sobrepassa. Como afirma Erling Kagge: «A vida prolonga-se quando andamos a pé. Caminhar expande o tempo». Mas é preciso provar a dureza da ruína para sentir a força do caminho e das suas vicissitudes. Não basta invocar uma ideia de caminho platónico ou de peregrinação espiritual. Não há “como se”, apenas caminhos a ser percorridos, pois somos desde as origens seres lançados à descoberta de mundo. Aqui é preciso mesmo sair da metáfora simbólica ou do mentalismo lírico, para experimentar a resistência da realidade na fadiga do corpo viajante. O modo como caminhamos dirá o que somos e como cremos. A experiência fundamental de Deus é exodal. «Aquele que será» acompanha o estrangeiro ou o refugiado ou o órfão até às bordas das águas frescas.
Sem essa resistência ao acomodamento epocal do espírito, é de temer que o ato de caminhar se torne o novo avatar de consumo utilitário, como o fascínio das divagações em torno do silêncio, de uma espiritualidade burguesa hiperindividual, sem reconstrução dos escombros nem atenção cuidada aos ligames afetivos comunitários. Para seguir os caminhos caminhados, e ainda o que falta por vir num passo de cada vez, firmes na inconsistência de solos em ruína, soa-nos aos ouvidos caminhantes os versos imemoriais do poeta sevilhano Antonio Machado:
Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
(Tradução de José Bento)
Para uma filosofia ou antropologia do caminhar, para além dos autores aqui citados, sugiro a leitura profícua de David Le Breton, Eloge de la marche, Editions Métailié, Paris 2000; Martin Heidegger, Caminhos da Floresta, Calouste Gulbenkian, Lisboa 2002. Na literatura universal, Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques, Antígona, Lisboa 20174, e na literatura de viagem espiritual, para além do clássico Relatos de Um Peregrino Russo ao seu Pai Espiritual, o livro de Patrick Leigh Fermor, Tempo de Silêncio, Tinta-da-China, Lisboa 2018. No âmbito teológico, o recentíssimo ensaio do teólogo alemão e caminhante apaixonado Gisbert Greshake, Camminare. Vie, deviazioni, crocevia, viae crucis, Queriniana, Brescia 2020.
João Paulo Costa
Mensageiro de Santo António, maio 2020
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