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A transição do século XIX para o século XX ofereceu à tradição cristã duas figuras de uma dimensão notável: uma, talvez mais conhecida para nós, é Teresa de Lisieux, ou do Menino Jesus; a outra é Charles de Foucauld. E nas duas narrativas biográficas encontramos espelhada, como no reflexo de uma lagoa, a expressão «seja o que Deus quiser».
A fuga ou o itinerário do deserto não se resume aos primeiros séculos da era cristã: também a Belle Époque (1871-1914) conheceu os seus resistentes, irredutíveis a acomodar-se ao desenvolvimento industrial, científico, social e cultural que parecia incarnar já, na história, o Reino universal – e que redundaria na Grande Guerra e nas revoluções do século XX, tal como, no século IV, a bela união entre a Igreja e o Império não evitaria as convulsões seguintes.
Charles de Foucauld (1858-1916) encarna em pleno o esplendor desta época: perito em «esbanjar todos os bens» que um rico contexto familiar propiciou, Foucauld fez carreira no exército francês, em campanhas militares no norte de África que o levariam ao encontro com os seus futuros irmãos de vida, de pobreza e de martírio: os habitantes muçulmanos do deserto. Após uma conversão súbita e total, Foucauld percorre o médio oriente, primeiro como monge trapista, e depois como eremita solitário. Em 1901 estabelece-se no sul da Argélia, construindo um eremitério onde sonhava estabelecer uma comunidade de hospitalidade e adoração, em relações fraternas com as pobres populações tuaregs. O sonho da comunidade nunca se concretizou em vida de Foucauld – só mais tarde, com os Pequenos Irmãos de Jesus, espalhados por todo o mundo. Apenas Paul Embarek, um escravo árabe emancipado, testemunharia a morte de Foucauld.
Não será uma coincidência – nunca o é – que tanto Teresa como Foucauld insistam tanto no caminho da humildade, da pequenez, do silêncio. Toda a sociedade – e sobretudo a sociedade francesa do seu tempo, no centro da civilização ocidental – respirava um brilho, um fausto social, económico e cultural, sustentado pela exploração social das classes sociais mais baixas. Também a Igreja surgia associada a este brilho, e a evangelização dos continentes africano e asiático seguia associada à expansão colonial. A vida de Foucauld entende-se neste cenário, e neste cenário se entende também o coração vital da sua experiência espiritual: a relação com Jesus como Irmão, como o Mestre que guia e ensina, com o coração de um irmão mais velho, os seus discípulos e companheiros. Daí surgiria a descoberta fundamental, o nó que liga a todos os itinerários: que a pregação por excelência é a da própria vida, e que a sua fecundidade brota do silêncio e da pobreza – algo que terá muito a dizer-nos, hoje. E se os Evangelhos nos narram, num estilo denso, uma vida de Jesus intensa e fecunda, não nos podemos esquecer que tal intensidade e fecundidade só encontrou a sua terra natal em longos períodos de calma e de silêncio, de observação e de partilha – fosse na vida rural de Nazaré, nos trabalhos piscatórios de Cafarnaum ou na itinerância pela Palestina, onde os lírios cresciam e as multidões se extenuavam, como ovelhas sem pastor.
«Quis ser chamado Jesus por esse nome ser profundamente terno e doce, e exprimir rigorosamente o meu amor por vós; e ainda por ser muito adequado a inspirar plena confiança em mim (…) É isso o que vos peço… Fiz-me e inúmeras vezes me declarei vosso irmão».
Os escritos de Foucauld possuem uma experiência sensível, um toque com todos os órgãos do seu corpo. São narrativas profundamente pessoais, companhia de caminhada quando a solidão mais se fazia sentir. Não foram pensados para o possível leitor – para além do seu diretor espiritual – e, ao mesmo tempo, são a busca de uma comunhão, a procura de um encontro, a transposição para a escrita do caminho de um cada vez maior desejo. O seu estilo habitual é o do diálogo – seja do místico com o seu Amor, seja do próprio Senhor com o seu discípulo, colocando na boca de Jesus os ensinamentos e virtudes que Foucauld considera vitais para a experiência cristã: uma prática que os místicos medievais – sobretudo as mulheres – gostaram de utilizar. É este o estilo que encontramos nas meditações da Quaresma de 1898, publicadas após a morte do mártir com o título Gritar o Evangelho (infelizmente, a única obra de Foucauld disponível em Portugal). Mergulhar na escrita de do Pequeno Irmão é entrar numa casa, num ambiente de intimidade, onde o Senhor, com os seus discípulos, conversa connosco.
O deserto recebeu o sangue quente de Foucauld, numa vitalidade que o cristianismo burguês da Europa ocidental não poderia encontrar. O regresso a Jesus de Nazaré deu-se aqui, nas cristãs e cristãos que, em todo o tempo – dos Padres do Deserto a Francisco de Assis, de João da Cruz a Teresa de Calcutá – depositaram aos pés da Cruz as estruturas do seu mundo e correram para longe, em direção à nudez, ao essencial, à pobreza extrema; e que sinónimos melhores do que estes para falar da morte? O Nome de Jesus transformou os seus lábios e a sua vida, ao estilo da narrativa do pequeno e ignorante camponês russo, imortalizada nos Relatos do Peregrino Russo ao seu Pai Espiritual. Oriente e Ocidente unidos, como cristãos e muçulmanos em Foucauld ou hindus e católicos em Teresa de Calcutá. Mas é sobretudo a nossa vida pessoal – bem mais difícil de unir do que as diversas religiões – que busca este Nome, sinal de paz, de confiança, de perdão, de proximidade, de cumplicidade, de beleza. «Na verdade, a tua bondade e o teu amor hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida», diz-nos o Salmo 23. Se Deus quiser.
«Por mais de uma vez me pedistes para vos ensinar a orar devidamente, e não deixei de vos esclarecer sobre isso. A oração é uma conversa com Deus, um grito da alma dirigido a Deus. Deve ser portanto algo de absolutamente natural, a expressão mais profunda do coração. Os lábios não precisam de intervir; o que tem necessariamente de intervir é o espírito e a vontade… Manifestardes e comunicardes ao Pai a vossa vontade com toda a verdade, nudez, sinceridade e simplicidade, isso é que é orar. Portanto, não é coisa que por si mesma exija muito tempo nem precise de muitas palavras nem envolva muitos pensamentos. Mas isso pode variar.»
«Em quaisquer formas de oração, embora possam interferir em maior ou menor escala o pensamento, o raciocínio, a reflexão e a palavra, há uma coisa que deve ocupar sempre, e de longe, o lugar da primazia: essa coisa é o amor. Seja qual for a forma de orar, o que sempre, absolutamente sempre, deve dominar, é o amor».
Para aprofundar:
Texto publicado aqui: http://www.imissio.net/artigos/59/1047/magazine-imissio-n-5-seja-o-que-deus-quiser/
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Excelente bagagem de abastecimento para o Ano que se inicia.
Boa reflexão, texto de ajuda preciosa para fortalecimento eucarístico.
Feliz Ano Novo!