Fundamentos

Completas

Richard McBee, ‘Jacob’s dream’ (1995)

 

O seu nome exprime completude, totalidade, cumprimento ou conclusão. É a oração litúrgica da noite, antes do sono ou do descanso. Não sabemos bem quando terá tido a sua origem na tradição da Igreja: São Bento já a refere na sua Regra, no século VI.

O convívio familiar sobrepõe-se naturalmente a este possível momento de oração; quando possível, a sua celebração permite um sabor especial ao dia que se conclui. Não por acaso, a escritora norte-americana Flannery O’Connor refere, nas suas cartas, preferir esta proposta de oração a outras, mais meditativas: a sua imaginação fértil (que permitiu romances notáveis!), conduzia-a para demasiado longe, excessivamente longe.

O seu esquema é simples, muito simples: um hino, um salmo e uma breve leitura bíblica para cada dia da semana, habitualmente convidando à confiança. Em comum, a passagem de Lucas 2, 29-32, o cântico do velho Simeão no tempo, conhecido como Nunc dimittis (as primeiras palavras da versão da Vulgata: “Agora deixarás”…), e uma antífona a Nossa Senhora. E, claro, o silêncio. Vale a pena retomar as belas palavras de Simeão:

«Agora, Senhor, segundo a vossa palavra,
deixareis ir em paz o vosso servo,
porque meus olhos viram a salvação,
que oferecestes a todos os povos:
luz para se revelar às nações
e glória de Israel, vosso povo».

Precisamos de concluir o dia, dando-lhe assim um sentido. A noite convida, na ausência da iluminação artificial, à pausa, à interrupção, ao corte ou limite que escreve o espaço e o tempo do viver. Ansiamos por alguém que nos diga que podemos partir em paz: o dia terminou, muito do possível e necessário ficou por fazer, muitas feridas foram abertas ou ficaram por curar – assim, a nossa natureza humana surge aos nossos olhos tal como é, longe das projeções de perfeição infinita que elaboramos. Só assim a luz da salvação, dom de graça, se pode revelar, quando surgir a aurora de um novo dia, dia de perdão e de recomeço, e não a simples continuação, em ponto morto, do anterior.

É muito significativa, neste sentido, a leitura que faz Eduardo Lourenço do nosso modo de viver:

«Simbolicamente, em matéria de informação, vivemos sob um regime de absoluto bombardeamento informativo, numa espécie de vigília contínua, sem termos a possibilidade, por assim dizer, de fecharmos os olhos. Assim, o que parece urgente é escapar a esse fluxo, descobrir um refúgio, em suma, defender ‘o direito a não ser informado’. Ou, com maior dose de provocação, o direito ao silêncio» (O Esplendor do Caos, 32).

A possibilidade deste momento surge aí, diante de nós. Deixemos que a noite nos ensine esta confiança como uma sabedoria diária: essa confiança será o segredo que, com os nossos lábios, pronunciaremos como a nossa resposta naquele Dia pleno em que, tendo cumprido o que pudemos e quisemos, aguardaremos o Perdão definitivo. E a Plenitude.

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@wpshower

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