I. Desejar, para além de si mesmo
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira diz na entrada do verbo desejar: «1. Pretender, querer. 2. Ambicionar, ansiar. 3. Apetecer, cobiçar. 4. Estimar, futurar, fazer votos, fazer empenho. 5. Pretender, estimar fazer votos para si próprio». Desejar parece, à partida, ser um verbo individualista, remetido para acontecimentos específicos do ano e da vida: os desejos que se fazem quando se apagam as velas do bolo de aniversário, os desejos do ano novo… Na verdade, a nossa capacidade para perceber os desejos e as preferências dos que estão à nossa volta é essencial, uma vez que nos permite prever e explicar as ações e reações do outro aos acontecimentos, melhorando as nossas interações sociais. Há desejos que são essenciais para a nossa sobrevivência: por exemplo, o desejo de satisfazer a fome é produzido automaticamente pela libertação no estômago da hormona grelina, que por sua vez atua no hipotálamo e leva o córtex a dar-nos instruções para nos alimentarmos. Pensemos um pouco para além destas necessidades, destes desejos fundamentais.
Os pequeninos já entendem disto…
Um estudo publicado em 2018 numa colaboração entre a Universidade da Virginia (EUA) e a de Leipzig (Alemanha) avaliou se as crianças entre os 24 e os 26 meses conseguiam prever se as ações de um indivíduo estavam de acordo com os seus desejos. A hipótese que colocavam poderia formular-se da seguinte forma: será que aos dois anos as crianças conseguem prever se um indivíduo alcança um objeto pelo qual tinha expressado emoções positivas (congruente com o desejo) em vez do objeto pelo qual tinha expressado emoções negativas (incongruente com o desejo)? Para isso usaram métodos não-verbais, e a resposta das crianças foi medida através de rastreamento ocular e da medição da dilatação da pupila. Quando o indivíduo agarrava o objeto incongruente com o desejo a pupila dilatava; o facto de agarrar o objeto negativo violava a expectativa da criança. Isto indica que a criança esperava que o individuo fosse agarrar o objeto positivo em vez do negativo. Os resultados desta experiência recente sugerem que as crianças com dois anos reconhecem robustamente se as ações de um indivíduo são consistentes com os seus desejos e de prever as ações de um indivíduo com base nos seus desejos.
No cérebro «vê-se» o desejo?
Semir Zeki é um neurobiólogo britânico que se tem dedicado ao estudo do cérebro visual dos primatas e correlação neuronal dos estados afetivos – como as experiências do amor, da beleza e do desejo – gerados por estímulos sensoriais no campo da neuroestética. Destes interessa-nos o desejo e em particular um estudo de 2008 em colaboração com o departamento de psicologia da Universidade de Kagoshima (Japão). Para este estudo usaram a ressonância magnética funcional com análise conjunta. A ressonância magnética funcional usa-se para medir a atividade cerebral (concretamente a circulação sanguínea) e a análise conjunta, neste caso, permite verificar se há alguma área do cérebro que esteja sempre ativa quando uma imagem é mostrada, independentemente da categoria a que pertence. O que estes investigadores se perguntavam era: haverá alguma área no cérebro na qual a sua atividade se correlacione em geral com o desejo? E, se existe, o nível de atividade está relacionado com os níveis declarados do desejo? Enquanto se fazia a ressonância, foram mostradas aos participantes do estudo três categorias de imagens (acontecimentos, objetos e pessoas) que pediram para classificar, independentemente da sua preferência, como desejável, indiferente ou indesejável. Os resultados mostraram que cada categoria ativou três áreas diferentes do cérebro: o córtex orbito-frontal superior, o córtex cingulado médio e o córtex cingulado anterior. É isso que podemos ver na figura. Os autores não identificaram nenhuma área que estivesse correlacionada com o indesejável. Isto sugere que existe um mecanismo do tipo puxa-empurra correlacionado com desejo, em que as duas áreas do cingulo e o córtex orbito-frontal medeiam ou modulam o desejável/indesejável.
Nem tudo o que queremos nos faz bem…
e não gostamos necessariamente do que desejamos. Quando os desejos se desviam daquilo que é bom, tudo se complica! Não só a nossa saúde, mas as interações com os que no rodeiam. A relação entre o desejar (querer) e o gostar têm respostas cerebrais diferentes que são particularmente importantes quando se estudam as adições, os vícios, as dependências. O corpo de conhecimento científico nesta área do desejo engloba psicologia, psiquiatria, neurobiologia e mais recentemente optogenética (luz, genética e bioengenharia). Tornou-se tão complexo, que só por si daria vários artigos.
Em «trigo-limpo-farinha-Amparo» como pode o desejar melhorar a nossa vida?
Bom, não é assim tão simples, nem há uma única resposta que englobe toda a complexidade do desejar, do querer. Ao longo deste ano, nos Verbos da Salvação, mencionámos algumas comunidades espalhadas pelo mundo que têm uma longevidade acima da média. Apesar de estarem localizadas em diferentes partes do mundo, as «zonas azuis», como lhe chamaram os autores, partilham aspetos em comum. Um deles é o sentido de propósito, de intenção. É aqui que entra o desejar. Estas pessoas têm um forte sentido de propósito, elas sentem-se queridas e necessárias na comunidade onde vivem, seja familiar e/ou alargada, e com a sua vida contribuem para um bem maior que elas mesmas.
II. Na escola bíblica do desejo: os Salmos
Habitualmente, quando pensamos na nossa experiência de fé ou de vida cristã, pensamo-la em dois registos: o âmbito da ética (a vivência de uma conduta moral, o cumprimento dos mandamentos ou a busca das virtudes), e o âmbito do ritual, de presença em celebrações litúrgicas e sacramentais e de participação comunitária. Ambos os registos podem ser guiados, por uma lógica de obrigação, de dever e de costume, muitas vezes imposto por nós próprios (mesmo que inconscientemente), e não a partir de fora. Também o medo pode fazer parte dos pensamentos e sentimentos que povoam a nossa mente e os nossos gestos diante dos sinais do Divino.
A esta experiência religiosa – que pode percorrer toda a nossa vida, num misto de indiferença e de vontade, união de contrários – faltará algo que a alimente e a transporte para uma busca vital que envolva as múltiplas facetas do nosso viver. Podemos designar esse “algo” por desejo. Sim, trata-se de desejar o Divino, de abrir-se a uma palavra nova – o «segue-me» evangélico – que vai além das nossas observâncias. Recorde-se o chamado episódio do Jovem Rico de Mt 19, 16-22: não é apenas a riqueza que o Jovem transporta a Jesus, mas o cumprimento integral dos mandamentos; no entanto, nem a riqueza, nem o cumprimento moral e religioso respondem à pergunta pela vida eterna, pelo desejo de uma vida plena no dom e na graça.
É o desejo que gera a procura, o caminho, o movimento de seguimento. Sem ele, a busca da oração arrisca-se a cair numa súplica repetida ou num autoelogio justificante. Agostinho de Hipona, no início do século V da nossa era, uniu o desejo à oração e ambos à caridade, escrevendo: «O teu desejo é a tua oração. Se o teu desejo for contínuo, contínua será também a tua oração (…) Se a caridade permanece sempre, clamas sempre; se clamas sempre, desejas sempre».
Meditaremos os Salmos bíblicos como uma linguagem por excelência para alimentar o desejo de uma busca – sempre mediado por sinais, figuras, encontros e desencontros quotidianos – com o Divino. O contacto com estes textos – separados de nós por cerca de 2500 a 3000 anos – resume-se, para muitos de nós, à escuta na eucaristia dominical, com frequência mal mediados por uma excessiva e individualística ênfase na tonalidade do cantor ou cantora… No entanto, é uma «multidão de testemunhas» (cf. Hb 12, 1) que, ao longo de toda a tradição espiritual cristã, fizeram dos salmos o alimento diário da oração e do desejo. Francisco de Assis, por exemplo, povoou a sua pregação e o seu testemunho de referência sálmicas, a partir de um contacto diário e vital. Da súplica pessoal ao louvor comunitário, do desespero pelos sofrimentos da história à ação de graças por todos os seres vivos, os salmos transpuseram o particular da experiência de Israel e foram o primeiro manual no qual os discípulos decifraram o mistério do Ressuscitado – guiados pelo próprio Jesus, que viveu nos salmos a casa da sua experiência orante. Recitar as palavras de outra pessoa constitui um exercício de iniciação, de aprendizagem da oração, libertando-nos dos horizontes limitados do nosso próprio desejo e da nossa linguagem: como referiu também Agostinho, ao contrário do que é habitual, neste caso o coração e a mente cedem o lugar, a primazia aos lábios, deixando-se moldar lentamente pelo que estes recitam, e moldando assim também o desejo.
Entremos nesta casa, através da meditação de três salmos em particular.
Salmo 129
Do profundo abismo chamo por Vós,
Senhor,Senhor escutai a minha voz.
Estejam os vossos ouvidos atentos
à voz da minha súplica.
Se tiverdes em conta as nossas faltas,
Senhor, quem poderá salvar-se?
Mas em Vós está o perdão,
para serdes temido com reverência.
Um orante anónimo, precursor de toda a comunidade de Israel, rezou e cantou este salmo de súplica na subida de peregrinação a Jerusalém. Um salmo que fala de redenção, isto é, de um desejo de perdão, de cura, de uma libertação de todas as cadeias – desejo realizado muito para lá de todas as nossas expectativas: «Mas em Vós está o perdão». Também as nossas pobrezas têm lugar na oração: assim se abre o nosso desejo.
A voz do orante emerge de um abismo profundo, quando a realidade faz surgir elevadas montanhas que nos cercam ou os joelhos dobrados no chão. O próprio elevar de um grito, de um apelo, é já em si desejo, abertura, um ponto de fuga ou de iluminação perante uma realidade em si aparentemente fechada. Repare-se, por exemplo, numa criança desejosa de ver os avós mas impossibilitada devido à atual pandemia: a sua memória afetiva, o seu desejo, o seu apelo são já uma ferida, uma abertura – talvez a única possível – perante uma realidade aparentemente fechada e indestrutível.
Eu confio no Senhor,
a minha alma confia na sua palavra.
A minha alma espera pelo Senhor,
mais do que as sentinelas pela aurora.
Mais do que as sentinelas pela aurora,
Israel espera pelo Senhor,
porque no Senhor está a misericórdia
e com Ele abundante redenção.
Ele há de libertar Israel
de todas as suas faltas.
Os salmos são a voz dos filhos diante da palavra dos pais (a Lei); os salmos (como os Profetas) são a palavra que já não apenas narra e faz memória dos acontecimentos passados da história bíblica (a Criação, os prodígios do Êxodo), mas clama pelo presente, pelos traços escondidos de Deus na história. A Bíblia não é apenas a história dos prodígios passados e das imagens fantásticas, mas é também o clamor, a dúvida, a prece do presente, das gerações que, como nós hoje, não assistiram a esses prodígios. Por isso o salmista está ao nosso lado, está na nossa voz, quando se encontra com as suas faltas, quando exprime uma espera, uma confiança, um desejo pela aurora (vivendo, por isso, de noite), quando reconhece no Senhor a misericórdia e a abundância da redenção – não só para aquele que deseja, como também para todo o Corpo, para a família, a comunidade, para Israel. É por isso que deseja. É por isso que espera.
Salmo 112
Louvai, servos do Senhor,
louvai o nome do Senhor.
Bendito seja o nome do Senhor,
agora e para sempre.
Desde o nascer ao pôr do sol,
seja louvado o nome do Senhor.
A nossa oração pode cingir-se à súplica, ao apresentar a Deus as necessidades, urgências e faltas que povoam os nossos dias. Aqui a dimensão do desejo que nos constitui fica retida na carência, no horizonte imediato, e sabemos como funciona o desejo: satisfeita uma exigência, de imediato surge outra. O desejo, como a oração ou a vida celebrativa, pode ficar retido em si, num círculo fechado de morte.
Por isso os salmos convidam ao louvor. Também a súplica e o lamento formam parte da sua linguagem, mas envolvidos, no início e no final, pelo louvor. O louvor – ainda que pelas palavras de um outro, do salmista e da comunidade que integrou esse património espiritual – constitui o ponto de partida, a pausa de respiro que faz sair o crente, ainda que por um momento, da sua situação de aflição ou de tristeza. Converte-se assim o louvor em princípio de libertação, em situar a própria dignidade daquele que ora: sim, o sofrimento não define quem sou, a tristeza não mergulha a minha alma.
O Senhor domina sobre todos os povos,
a sua glória está acima dos céus.
Quem se compara ao Senhor nosso Deus,
que tem o seu trono nas alturas
e Se inclina lá do alto
a olhar o céu e a terra?
Levanta do pó o indigente
e tira o pobre da miséria,
para o fazer sentar com os grandes,
com os grandes do seu povo,
e no lar, transforma a estéril
em ditosa mãe de família.
Apenas podemos utilizar a linguagem humana, no espaço e no tempo, para falar de Deus. Uma Glória que se eleva e domina é uma Glória que não se deixa dominar (como um ídolo) pelo desejo humano, pelas suas ambições e expetativas. Deus será sempre um Deus Outro, diferente, como as lógicas diferentes de Jesus e das suas parábolas revelam. E por isso a realidade também se transforma e se renova, liberta-se dos cálculos e horizontes do nosso desejo fechado para se converter, para levantar, tirar, fazer sentar, transformar… verbos que expressam, também, uma salvação a advir. O desejo é assim orientado por um Espírito de conversão, no qual as nossas necessidades cedem, momentaneamente, o seu lugar no centro para abrir esse centro – o coração, os pensamentos, o olhar – ao Deus de novidade, como ao pobre, ao indigente e à estéril que nos precedem no Reino: a oração abrirá o nosso desejo de ensaiarmos conceder essa precedência.
Salmo 22
O Senhor é meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.
Ele me guia por sendas direitas,
por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.
Os vários tempos verbais conjugam-se num salmo de confiança: nele se entrecruzam o passado, o presente, o futuro. O presente no qual e do qual o salmista fala, sobre o Senhor que o conduz, guia e reconforta, é fruto de uma história, de uma experiência, de um passado encontrado pela bênção. A confiança no presente só será possível com o reconhecer, pelos olhos da fé, as tantas presenças de bênção na nossa história. Bênçãos de pessoas, de bens, de superação, de alimento, da própria vida: é no sensível que Deus atua e se revela.
É também um salmista que se reconhece a caminho, numa história, que pode falar de ser guiado a prados, águas, sendas, vales, seja refrescantes como tenebrosos: de tudo faz parte a história do crente. Reconhecer esse presente de confiança não pressupõe uma realidade perfeita, conquistada e estabelecida: tal não é a linguagem do desejo. O desejo brota de uma vida a quem falta algo, um desejo, assim, aberto ao futuro.
Para mim preparais a mesa,
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça
e meu cálice transborda.
A bondade e a graça hão de acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor,
para todo o sempre.
Também de propósitos é feita a oração, como o desejo. «Habitarei na casa do Senhor…». São propósitos que vivem do registo da Aliança, isto é, que envolvem dois interlocutores, o crente e Aquele que lhe dá a vida. E da vida fala-se por símbolos como a mesa, o perfume e o cálice, porque é a abundância que o coração humano aspira, abundância essa que, no entanto, só por dom poderá receber e só na partilha se poderá renovar.
O desejo do cristão contém tudo o que de intrinsecamente humano lhe pertence, mas conhece, também, aquela Palavra impossível que lhe advém de longe: «Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo…». Reino de impossíveis porque ilógicos, como o amor, o perdão, a graça e a bondade. Reino que, nem para o salmista nem para o discípulo de Jesus, pertence a outro mundo, mas que emerge da nossa única vida, vida agraciada e sofrida, vida acompanhada. Os Salmos iniciam e conduzem o crente no seu desejo, ao encontro com Aquele que nos prometeu ser o Caminho, a Verdade e a Vida. Acolhamos, no nosso dia a dia, essa riqueza tão abundante quanto acessível.
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