«Quando se chegaram para o amortalhar, Quina rezava diligentemente uma melopeia improvisada e penetrada duma piedade um tanto fútil. Não a interromperam, e ela, pressentindo atrás de si o pequeno magote de vizinhos, chefiados por Domingas, elevou a voz, que se tornou surda e pesada, com uma retumbância trágica e cheia de calor. “Aceita-o nos teus braços, ó meu Senhor, e que ele encontre tudo o que procurou aqui e não pôde achar; todo o tempo que já tinha vivido, com todas as coisas boas que ele, para tua glória, contém; todas as coisas que por teu amor nascem e por teu amor morrem; tudo que por tua inspiração desejamos, e não tivemos forças para conseguir. Agora, ele está pobre e nu diante dos teus olhos divinos. Recebe-o. Esclarece-o agora, para que ele te diga por que pecou, e possa ser perdoado. Porque nós não sabemos por que erramos, só tu o sabes, Senhor, e é por isso que tu perdoas. Nós não compreendemos essa piedade, nós não compreendemos nada de nós, nem temos voz para explicar, nem olhos para ver no escuro, nem ouvidos para ouvir quando tudo parece calado. Mas tu estás do outro lado da noite. Agora, este que foi homem sabe porque veio de ti e voltou para ti, e já não nos pertence. Ajuda-o, porque agora deves guardá-lo – ele não está mais à nossa guarda. Na morte não há irmãos, ele já não é mais nosso…”». (p. 101)
«Tinha-se operado nela uma estranha mudança. Como alguém que sofre uma acusação partida do íntimo, se afrouxa no remorso e é prostrado pelo descrédito de si próprio, assim ela se comportava. Tinha ganho talvez em suavidade e simpatia, mas, de facto, alguma coisa do seu carácter se constrangera até se estiolar». (p. 148)
Agustina Bessa-Luís, A Sibila (Lisboa 2017).
«Havia contudo um perigo, que a carta sublinhava e apresentava com um certo regozijo, como se o perigo fosse inevitável. Era o perigo de ser um trabalhador. Serviço, superior imediato, trabalho, remuneração, prestar contas, trabalhador: era só do que a carta falava, e mesmo a menção a coisas mais pessoais reflectia ainda esse ponto de vista. Se K. queria ser um trabalhador, isso ser-lhe-ia concedido, mas com uma seriedade tremenda, sem nenhumas outras perspectivas. K. sabia que não o ameaçavam com um vínculo real, não era isso que receava e aqui ainda menos, mas a violência do ambiente desencorajador, o hábito das desilusões, a violência da influência imperceptível de cada instante, isso ele já receava, mas teria de ousar lutar contra este perigo. Também isso a carta não omitia, se chegasse a ocasião para lutar, fora K. quem instigara a luta com a sua temeridade, era dito sutilmente, e só uma consciência intranquila – intranquila, não pesada – o podia notar, eram as duas palavras “como sabe” relativas à sua admissão. K. apresentara-se e desde esse momento sabia, como dia a carta, que fora admitido».
F. Kafka, O Castelo (Lisboa 2017, p. 31)
Uma boa notícia: a primeira (penso) edição em Portugal de um texto de uma Beguína. Pela mão das Edições Afrontamento e do Instituto de Filosofia do Porto. Uma recensão e apresentação em breve.
De Milan Kundera, em O Livro do Riso e do Esquecimento:
«Mas ouvirá realmente? Ou limita-se a olhar, tão atenta, tão silenciosa? Não sei, e não tem muita importância. O que interessa é que ela não interrompe. Sabem o que acontece quando duas pessoas conversam. Uma fala e a outra corta-lhe a palavra: é exactamente como eu, eu… e começa a falar de si até a primeira conseguir dizer por sua vez: é exactamente como eu, eu…
Esta frase, é exactamente como eu, eu… parece ser um eco de aprovação, uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engano: na realidade, é uma revolta brutal contra uma violência brutal, um esforço para libertar o nosso próprio ouvido da escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário. Porque toda a vida do homem entre os seus semelhantes mais não é do que um combate para se apoderar do ouvido de outrem. Todo o mistério da popularidade de Tamina vem de ela não querer falar de si mesma. Aceita sem resistência os ocupantes do seu ouvido e nunca diz: é exactamente como eu, eu…
(…)
«Quando nos afastamos da fila, ainda nos é possível voltar. A fila é uma formação aberta. Mas o círculo fecha-se e quando se sai é sem regresso. Não é por acaso que os planetas se movem em círculo e que a pedra que salta se afasta inexoravelmente, levada pela força centrífuga. Tal como o meteorito arrancado a um planeta, saí do círculo e, ainda hoje, não paro de cair. Há pessoas a quem é concedido morrer em órbita e outras que se esmagam no fim da queda. E outras (às quais pertenço) conservam sempre em si como que uma tímida nostalgia da roda perdida, porque somos todos habitantes de um universo em que todas as coisas giram em círculo.
(…)
«Se quisera apagá-la das fotografias da sua vida, não era por não a amar, mas por a ter amado. Apagara-a, a ela e ao amor, raspara-lhe a imagem até a fazer desaparecer como a secção de propaganda do partido fizera desaparecer Clementis da varanda em que Gottwald pronunciara o seu discurso histórico. Mirek reescreve a História exactamente como o Partido Comunista, como todos os partidos políticos, como todos os povos, como o Homem. Proclama-se que se quer construir um futuro melhor, mas não é verdade. O futuro é só um vazio indiferente que não interessa a ninguém, mas o passado está cheio de vida e o seu rosto irrita, revolta, fere, a ponto de querermos destruí-lo ou voltar a pintá-lo. Só se quer ser senhor do futuro para poder mudar o passado. Luta-se para ter acesso aos laboratórios em que é possível retocar as fotografias e reescrever as biografias e a História».
“La persona que, mientras ora, es consciente de que lo está haciendo, será problemática.”
Excerto de: Thomas Merton. “LOS MANANTIALES DE LA CONTEMPLACIÓN. Un retiro en la abadía de Getsemaní”.
LÓGICA NECROLÓGICA
Os amores
que não tive
(e foram
muitos)
moeram-me
o juízo
Também
não tive
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum
Não
me queixo
O que
não foi
(e foi muito)
deu-me
muito trabalho
e muito
Adília Lopes, Capilé, 2016, p. 29
«Todos os cumes
estão em silêncio.
No alto de todas as árvores
apenas sentes
um leve sopro;
os pássaros emudecem na floresta.
Tem paciência, em breve
também tu dormirás.
A ideia do poema [de Goethe] é muito simples: a floresta adormece, tu vais também adormecer. A vocação da poesia não é deslumbrar-nos com uma ideia surpreendente, mas fazer com que um instante do ser se torne inesquecível e digno de uma insustentável nostalgia».
Milan Kundera, A Imortalidade, Lisboa 2012, p. 35
«Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo à etapa seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente».
Milan Kundera, A Imortalidade, Lisboa 2012, p. 251
[De João Miguel Fernandes Jorge, Mirleos, Lisboa 2015]
[…] Quanto a José, que
não figura entre as mães, deixava-se estar
de seu hábito
o mais das vezes pés nodosos ao sabor da terra
[se fosse hoje haveria de pôr sapatilhas
para dançar nas margens do mar] ele, que não figura
no grupo,
sorria melhor
que jamais alguém, possíveis e avizinhados.
—
CRISTO NEGRO
Pelo começa da primavera
florescem as cerejeiras. A cruz
foi erguida.
A morte feriu-lhe os lábios.
Chaga de sangue negro.
Um pouco de água para aquele que morre.
A cabeça caiu sobre o peito.
Ao peso do corpo rasgam-se os tendões.
Queimam os olhos um rastilho de gelo.
A dor chegou ao fim,
antes de se iluminar o crepúsculo – eco
cortante da deriva da alma.
As suas carnes brilham na frieza do luar.
“Lo que llevo son pantalones. Lo que yo hago es vivir. Mi forma de orar consiste en respirar. ¿Quién dijo «zen»? Enjuaga tu boca si dijiste «zen». Si ves una meditación que pasa cerca, dispara contra ella. ¿Quién dijo «amor»? El amor está en las películas. La vida espiritual es algo que preocupa a muchos cuando andan tan atareados con otra cosa que ellos mismos piensan que tienen que ser espirituales. La vida espiritual es culpa.”
Excerto de: Thomas Merton. “Diarios [1939-1968]”. iBooks, (p. 581).
A importância do negativo na vida espiritual:
«Não temos chefe, nem guia nem profeta,
nem holocausto nem sacrifício, nem oblação nem incenso,
nem lugar onde apresentar-Vos as primícias
para alcançar misericórdia.
Mas de coração arrependido e espírito humilhado
sejamos por Vós recebidos».
Daniel 3, 38-39
De Dietrich Bonhoeffer (via Gustavo Cabral):
«Creio que Deus pode e quer fazer surgir o bem de tudo, inclusive do péssimo. (…)
Creio que nem as nossas faltas e erros são em vão, e que para Deus será mais fácil contar connosco neles do que com as nossas supostas boas ações».
Quarta-feira de Cinzas:
«Faz luto, homem, porque ainda não és pó. Recebe as tuas cinzas e alegra-te».
Thomas Merton, Diários, 26 de fevereiro de 1952
«As abelhas são felizes e, por isso mesmo, silenciosas».
Thomas Merton, Diários, 14 de julho de 1949
“Tal como não é possível navegar pelo mar
Sem que haja portos e ancoradouros,
Tampouco é possível que a nossa vida tenha consistência
Se dela eliminarmos a compaixão, o perdão e a caridade”.
(João Crisóstomo, Homilias sobre São Mateus, 53, 3)
«Qual é o sentido da vida?»
«Eu acho que os homens não são capazes de responder a esse sentido. O sentido da vida… o preocupar-se com o sentido da vida é o máximo que o homem e a consciência humana atinge, a auto-consciência de que é aí que tudo se inscreve, em ser consciente de que vivemos, e que essa vida é uma vida limitada, e que o sentido da vida se inclui nessa consciência da própria limitação. Nós não somos os deuses de nós mesmos: isso é a única coisa que eu sei». (16:30)
…
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