«Quando andava na Faculdade de Ciências, estudava astronomia, as leis de Kepler, mas não andava de noite a ver as estrelas e a Lua.
Quando andava na Faculdade de Letras, estudava a cantiga de amigo “Bailemos nós ja todas tres, ai amigas, / so quests avelaneiras floridas”, mas não dansava (sic).
A minha vida estava errada. Mas estudar foi bom (20-IX-2021)».
Pardais, Lisboa 2022, p. 11.
«E se precisamente este virar costas a Deus mais não fosse do que o caminho actual para Deus? Cada época escolheu o seu caminho próprio para Ele, de acordo com as mais fortes forças espirituais que a dominavam. Não seria então o nosso destino, o destino de uma época de experiências inteligentes e empreendedoras, o de negar todos os sonhos, lendas e ideias rebuscadas, pela simples razão de que nos encontramos no auge da investigação e da descoberta do mundo e nos voltaremos de novo para Deus estabelecendo com Ele uma relação assente num recomeço da experiência?». (p. 74)
«E assim regresso à questão anterior: será o amor um sentimento? Acho que não. O amor é um êxtase. E o próprio Deus teria de se encontrar num estado permanente de êxtase para poder amar o mundo em permanência, abarcar com o amor do Deus-Artista também o já acontecido. Só assim Ele seria concebível…». (p. 119)
«É assim que gostaria também de descrever o que é uma analogia, uma comparação ou um símbolo: impedem o pensamento e excitam-no mais do que habitualmente». (p. 227)
Robert Musil, O Homem sem Qualidades, vol. III (Lisboa 2009).
Não terá, por conseguinte, passado já o tempo para o meu ensaio do dia conseguido? Terei perdido o momento? Deveria eu para isso “ter-me levantado mais cedo”? E não corresponderá a ideia de um tal dia mais à forma de um salmo, a uma súplica, é bem certo que antecipadamente vã, do que a um ensaio? Dia, produz-me alguma coisa, mais, tudo em ti (…) Divino ser ou tu, aquele “mais do que eu” que outrora falava “pela boca dos profetas” e depois ” pela boca do Filho”, será que também falas no presente, de modo puro, pela boca do dia? E porque não posso eu deter, nem agarrar, nem transmitir o que assim fala pela boca do dia e que recomeça, e nisto creio por força da fantasia, sei-o, em cada momento sempre de novo a falar? “O que é, o que foi e o que será”: porque não se pode já dizer isto do meu dia de hoje como, a seu tempo, se dizia de “Deus”?
Peter Handke, Ensaio sobre o dia conseguido, Lisboa 2020, p. 41.
«Escolhem Deus para não se inclinarem diante das pessoas, sem verem, naturalmente, como isso lhes acontece: inclinar-se diante de Deus não é tão humilhante. São crentes extraordinariamente ardorosos, ou, com mais exatidão, que querem ardentemente acreditar; mas tomam o desejo pela própria fé. É desses que acabam por sair com especial frequência os desiludidos». (p. 64).
«Cristo perdoa tudo, Arkacha: perdoa a tua blasfémia e até o pior que fazes. Cristo é o pai, Cristo não precisa de nada e brilha até nas trevas mais profundas». (p. 266).
«É talvez do homem descrente – continuou o velho com ar concentrado – que eu ainda hoje tenho medo; simplesmente, meu amigo Aleksandr Semiónitch, nunca encontrei um homem descrente; o que tenho encontrado em vez disso são homens inquietos – é a melhor maneira de lhes chamar». (p. 375).
F. Dostoievski, O Adolescente, Lisboa 2019.
«É tão grande o perigo de falarmos de mais, principalmente no nosso tempo… Pela ociosidade da nossa palavra, não teremos um dia transviado algum coração prometido ao silêncio, onde se tomam as grandes decisões?».
Ruy Belo, no Prefácio ao livro de Antoine de Saint-Exupery Cidadela, da qual foi tradutor (ed. Livros do Brasil, Lisboa 2017) (p. 7)
«Há trinta e cinco anos que bebo jarros de cerveja, não pelo prazer de beber – tenho horror a bebedeiras –, mas para me ajudar a pensar, para melhor captar o âmago dos textos, pois não leio para me distrair, nem para fugir ao tédio, nem mesmo para adormecer melhor: eu, que vivo num país onde há quinze gerações se sabe ler e escrever, bebo para, com a leitura, nunca mais dormir, para que a leitura me dê tremuras» (p. 10).
«Mas sorrio, pois levo na pasta os livros que espero me revelem à noite algo de mim que ainda desconheço» (p. 15).
«E todos líamos esses livros, na esperança de um dia lermos algo que nos mudasse qualitativamente» (p. 98).
Bohumil Hrabal, Uma solidão demasiado ruidosa, Antígona, Lisboa 2019
«Nesta passagem, se for perfeita, é necessário que se deixem todas as operações intelectivas e que o ápice mais sublime do amor seja transferido e transformado totalmente em Deus. Isto porém é uma realidade mística e ocultíssima, que ninguém conhece a não ser quem recebe, nem ninguém recebe senão quem deseja, nem deseja senão aquele que é inflamado, até à medula da alma, pelo fogo do Espírito Santo, que Cristo enviou à terra. Por isso diz o Apóstolo que esta sabedoria mística é revelada pelo Espírito Santo.
Se pretendes saber como isto sucede, interroga a graça e não a ciência, a aspiração profunda e não a inteligência, o gemido da oração e não o estudo dos livros, o esposo e não o professor, Deus e não o homem, a nuvem e não a claridade. Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama e transfere para Deus, com unção suavíssima e ardentíssimos afectos. Esse fogo é Deus; a sua fornalha está em Jerusalém. Cristo acendeu-o na chama da sua ardentíssima paixão. Só verdadeiramente o recebe quem diz: A minha alma preferia o estrangulamento, e os meus ossos a morte. Quem ama esta morte pode ver a Deus, porque é indubitavelmente verdade que nenhum homem poderá ver-Me e continuar a viver.
Morramos, pois, e entremos nessa nuvem; imponhamos silêncio às preocupações terrenas, paixões e imaginações; passemos, com Cristo crucificado, deste mundo para o Pai, a fim de que, ao manifestar-se-nos o Pai, digamos com o apóstolo Filipe: Isto nos basta; e ouçamos com São Paulo: Basta-te a minha graça; e exultemos com David, exclamando: Desfalece a minha carne e o meu coração: Deus é o meu refúgio e a minha herança para sempre. Bendito seja o Senhor para sempre. E todo o povo diga: Amen. Amen».
São Boaventura, Itinerário da Mente para Deus, cap. VII
«Portanto, irmãos, devemos todos alegrar-nos neste santo dia. Ninguém se exclua desta alegria universal, apesar da consciência dos seus pecados; ninguém se afaste das orações comuns, embora sinta o peso das suas culpas. Por mais pecador que se sinta, ninguém deve neste dia desesperar do perdão. Temos a nosso favor um valioso testemunho: se o ladrão mereceu o Paraíso, como não há-de merecer o perdão o discípulo de Cristo».
São Máximo de Turim (séc. V), Sermão 53 – OL Dom. V TP
«Os que foram dignos de se tornarem filhos de Deus, de renascerem pelo Espírito Santo e receberem em si a Cristo que os ilumina e lhes dá uma vida nova, são conduzidos pelo Espírito de muitos e diversos modos e dirigidos pela graça em grande paz de espírito.
Umas vezes… outras vezes…
Umas vezes, abatidos por um sentimento de profunda humildade, consideram-se como os mais abjectos e desprezíveis de todos os homens. Outras vezes, são reconfortados pela alegria inefável do Espírito […] Umas vezes, recebe do Espírito graças especiais de inteligência, sabedoria e conhecimento inefáveis, superiores a tudo o que humanamente se pode dizer ou exprimir. Outras vezes, como qualquer homem, nada de especial experimenta.
Deste modo, a graça conduz a alma através de vários e diversos estados ou situações, exercitando-a de muitas maneiras e conformando-a com a vontade de Deus, com o fim de a tornar perfeita, irrepreensível e sem mancha diante do Pai celeste».
Das homilias de um autor espiritual do século IV (OL, sexta-feira IV TC).
«Devo ser muito desatento. Demoro demasiado tempo a relacionar os sinais que Deus espalha, na Sua abundância. Sei que muitos ficam para sempre ignorados pela minha cegueira, caindo inúteis a toda a volta, como poeira sobre os campos».
«Só podemos ver os sinais que desde sempre nos foram destinados. E assim aprendo que o trabalho é pessoal, que as resposta crescem dentro de cada um, como o circuito das artérias, as estrias musculares, a ramificação dos nervos, procurando no que cada um procura, encontrando no que cada um encontra. Mas é preciso cuidar do alimento, confirmar a atenção».
Carlos Poças Falcão, A Nuvem, Guimarães 2019
Sobre o não se levar demasiado a sério:
«Conta-se acerca do pai Macário que, se um irmão se aproximava dele com temor e como se tratasse com um santo ou um grande homem, nem sequer lhe falava. Se, porém, um irmão se lhe dirigisse com desprezo ou nestes termos: “Pai, quando eras criador de camelos e roubavas sal para vender, os guardas não te puniam?”. Se alguém começava assim, então respondia a todas as perguntas com alegria».
(Lamelas, 2016) p. 76
O pai Nicetas contava o seguinte, a respeito de dois irmãos que decidiram viver como monges juntos. O primeiro pensava consigo mesmo: «Se meu irmão desejar algo, eu lhe farei a vontade». O segundo pensava de modo semelhante: «Eu farei a vontade de meu irmão». E assim viveram em grande caridade por muitos anos.
Ao ver isso, o inimigo decidiu separá-los, colocando-se à entrada da sua cela, aparecendo, a um, sob a forma de pomba e, ao outro, sob a forma de corvo. O primeiro disse: «Vês esta pombinha?». O outro disse: «É um corvo!».
Começaram então a discutir e a contradizer-se, ao ponto de chegarem a agredir-se violentamente, e, para grande alegria do inimigo, acabaram por separar-se. Passados três dias, contudo, entraram em si e voltaram a reunir-se, e, um aos pés do outro, confessaram o que cada um pensara ter visto na ave que tinha aparecido. E, reconhecendo a cilada do inimigo, permaneceram até ao fim sem se separarem.
(Lamelas, 2016)
Um irmão interrogou um ancião nestes termos:
«Há dois irmãos: um vive recolhido na sua cela, jejuando durante seis dias e fazendo muitas penitências; o outro cuida de um doente. Qual deles agrada mais a Deus?»
O ancião respondeu:
«O irmão que jejua seis dias por semana, ainda que se dependurasse pelas narinas, nunca igualaria aquele que serve o enfermo». (Lamelas, 2016)
«A Igreja era uma mobilizadora parcial, e a sua eventual resistência poderia já ser comparada à de elementos pouco importantes. Se os crentes, ou os próprios padres, fizessem greve isso seria bem menos significativo e visível numa cidade do que uma greve de canalizadores ou de electricistas. A boa circulação da água ou da electricidade tornara-se, para o dia-a-dia, bem mais indispensável do que a boa circulação do sopro divino».
Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na era da técnica (p. 217)
«Se os materiais e a forma de os transformar por via dessas metodologias úteis de tortura – torção, dissolução, fusão – haviam evoluído, já as paixões humanas haviam permanecido imobilizadas. Nem um sentimento novo surgira na geração de Lenz. Existiam, ao contrário do que dizia a frase bíblica, coisas noivas sob o sol, o que não existia era algo de novo sob a pele. O coração entrava nos mesmos combates e atravessava as mesmas indecisões dos antigos. Claro está que a técnica e a medicina, de que ele era um fiel representante, permitiam o prolongamento das paixões; o que para Lenz apenas significava que o ser humano agora podia odiar até mais tarde».
Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na era da técnica, 2016 (p. 43)
«Um ancião dizia: ‘Exercitemos a doçura, a resignação, a paciência e a caridade, pois isto é ser monge’» (Lamelas 2016). p.92
Eu acrescentaria: e ser pai.
De Kafka, sobre o medo:
«Sou sujo, Milena, infinitamente sujo, por isso faço uma tal gritaria sobre o asseio. Ninguém canta de maneira mais pura do que os que estão no mais fundo dos infernos; o que julgamos ser o canto dos anjos é o canto deles». (p. 167)
«É importante saber isso porque, no caso de nos encontrarmos, o de Viena ou mesmo o de Gmund vai aparecer outra vez, em perfeita inocência, como se nada tivesse acontecido, enquanto, em baixo, o verdadeiro, desconhecido de todos e de si próprio, existindo ainda menos do que os outros, mas, nas suas manifestações de poder, mais real do que tudo (porque é que ele não trepa finalmente até cima para se mostrar?), vai erguer-se ameaçador e despedaçar tudo outra vez» (p. 205)
«A viagem está ainda um pouco atrasada, porque tenho coisas para fazer na repartição. Estás a ver, não tenho vergonha de pôr no papel que ‘tenho coisas para fazer’. É claro que podia ser um trabalho como outro qualquer; no meu caso, é uma sonolência, tão próxima da morte como o sono» (p. 207).
«Receio é, em primeiro lugar, os custos – aqui é tão caro que só cá se devia passar os últimos dias antes da morte, nessa altura não sobra nada – e, em segundo lugar, tenho medo – em segundo lugar – do Céu e do Inferno. Tirando isso, tenho o mundo à disposição» (p. 224).
Franz Kafka, Cartas a Milena, Lisboa 2018
«O Cristo que levamos no nosso próprio coração é mais frágil que o Cristo na palavra do irmão. Este é certo; aquele é incerto».
Bonhoeffer, Vida em Comunidade
«Eu tenho a promessa do Senhor, tenho comigo a sua palavra escrita: este é o meu bordão, esta é a minha segurança, este o meu porto tranquilo. Ainda que todo o mundo se perturbe, eu tenho a sua resposta por escrito, leio a sua Escritura: esta é a minha muralha, esta é a minha fortaleza. Que diz a Escritura? Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo.
Cristo está comigo; a quem hei-de temer? Ainda que se lancem contra mim as ondas do mar ou o furor dos príncipes, tudo isto para mim é mais desprezível do que uma teia de aranha. E se a vossa caridade me não retivesse aqui, não recusaria partir hoje mesmo para onde quer que fosse. Porque sempre estou dizendo: Senhor, seja feita a vossa vontade; não o que quer este ou aquele, mas o que Vós quereis que eu faça. Esta é a torre que me abriga, esta é a pedra firme que me sustenta, este é o bordão que não me deixa vacilar. Seja o que Deus quiser».
João Crisóstomo, das homilias antes de partir para o exílio
O cristão meramente praticante é aquele que está sempre a dizer: «Posso estar descansado: hoje cumpri todos os meus deveres». O cristão enamorado é aquele que não para de dizer: «Sim, fiz alguma coisa; mas ainda tenho tanta coisa para fazer!».
António Couto, https://mesadepalavras.wordpress.com/2019/08/24/e-nos-que-pensavamos-que-tinhamos-lugar-garantido/
«E se te quiseres orgulhar, lembra-te que não és tu quem sustenta a raiz, mas a raiz é que te sustenta a ti» (Rm 11,18).
«Quando recusamos todos os dias o milagre da santidade, o único que depende de nós, por que razão pediríamos milagres gratuitos?»
Emanuel Mounier, Cartas sobre a dor, Coimbra 2019 (p. 63).
«At the center of practically all they have to say is Christ’s own command not to be afraid. Dying to the neighbour, refusing to judge, the freedom to ask, like Abba Joseph, ‘who am I?’ – all this is about freedom from fear». p. 34
«A heart of stone towards myself, a heart of flesh towards others, a heart of flame towards God». (p. 36)
Rowan Williams, Silence and honey cakes – The wisdom of the desert, Oxford 2004 p. 34
Da quietação
No silêncio da noite, em que vigio,
Desterrado da terra o pensamento,
No que dentro nest’alma represento,
Ora me aquento mais, ora me esfrio.
E pera temperar fogo com frio,
Em que m’esfrio mais, ou mais m’aquento,
Dos efeitos do puro sentido,
Na minha saudade choro e rio.
Depois destes contrários temperados
Na mor quietação, na mor brandura,
Meus pensamentos ficam sepultados.
Temperada a frieza na quentura
Do meu divino amor tão apurados,
Que me deixam em paz na sepultura.
Frei Agostinho da Cruz, Antologia Poética (org. Ruy Ventura), Ed. Licorne 2019 (p. 66)
…
«Qual é o Deus que, como Tu,
apaga a iniquidade
e perdoa o pecado do resto da sua herança?
Não se obstina na sua cólera,
porque prefere a bondade.
Uma vez mais, terá compaixão de nós,
apagará as nossas iniquidades
e lançará os nossos pecados ao fundo do mar».
Miqueias 7, 18-19
«Supones que yo tengo una vida espiritual? No, no la tengo. Yo soy indigencia, soy silencio, soy pobreza, soy soledad, porque he renunciado a la espiritualidad para encontrar a Dios y es Él quien predica en voz alta en lo profundo de mi indigencia… “Compasión”». Thomas Merton
«Penso que a sua (de Paulo) prática há muito mantida de uma oração centrada em Jesus, tomando os poemas e os moldes das Escrituras e encontrando Jesus no seu cerne, foi crucial em ajudá-lo a encontrar o seu caminho para fora do desespero e de regresso à esperança. A cristologia e a terapia vão bem uma com a outra, mesmo se, como Jacob, um apóstolo possa sair a coxear, no estilo e talvez também no corpo, depois da negra noite a lutar com o anjo».
N. T. Wright, São Paulo, Lisboa 2019 (p. 287)
«Se pretendes saber como isto sucede, interroga a graça e não a ciência, a aspiração profunda e não a inteligência, o gemido da oração e não o estudo dos livros, o esposo e não o professor, Deus e não o homem, a nuvem e não a claridade. Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama e transfere para Deus, com unção suavíssima e ardentíssimos afectos. Esse fogo é Deus».
São Boaventura, Itinerário da Alma para Deus, cap.7 (séc. XIII)
«Confiai-lhe todas as vossas preocupações, porque Ele tem cuidado de vós».
(1Pe 5, 7)
A meta do caminhar, viver amorosamente à espera desse dom: «A paz esteja convosco!» (Jo 20, 19).
Viver, esperando e cumprindo.
«Se me agradam, as coisas são como são; se não me agradam, as coisas são como são» (Carlos Cuartango).
Deus é um Deus de vivos, não de mortos: por isso, está ao meu lado, na minha vida, tratando-me como um vivo, não como um morto. Trata-se da aprendizagem do princípio da realidade, superando o princípio do prazer (de buscar apenas as consolações).
«Certa vez, um pregador perguntou a um grupo de crianças: “Se todas as pessoas boas fossem brancas e todas as pessoas más fossem pretas, de que cor seríeis?”. Uma das crianças, Lúcia, respondeu: “Eu, senhor padre, seria uma zebra”».
«Esta é a verdadeira, perfeita, estável e eterna amizade. Não se deixa corromper pela inveja, não diminui com suspeitas, não se dissolve pela ambição; posta à prova, não cedeu; assaltada, não caiu; batida por tão graves insultos, ficou inflexível; provocado por tantas injúrias, permaneceu imóvel».
Aelredo de Rievaulx, A amizade espiritual, livro 3 (séc. XII)
«Um amigo fiel é uma poderosa protecção;
quem o encontrou, descobriu um tesouro.
Nada se pode comparar a um amigo fiel,
e nada se iguala ao seu valor.
Um amigo fiel é um bálsamo de vida;
os que temem o Senhor acharão tal amigo.
O que teme o Senhor terá também boas amizades,
porque o seu amigo será semelhante a ele».
Ben-Sirá 6, 14-17
«Etty Hillesum é um ser humano muito complexo, muito rico (…) Ela conheceu o caos desde pequena, e foi através da relação amorosa e intelectual que teve com Julius Speer que se transformou. Ela, quando foi para Westerbork, estava transformada por aquele homem, e estava transformada no sentido de aceitar o seu próprio caos. E a aceitação do seu próprio caos – que tinha formas muito variadas, desde eróticas até à incapacidade para dormir, que tinham a ver com problemas familiares (…) Os três filhos tinham problemas muito grandes, mas a única que conseguiu transformar esses problemas num dom criativo foi Etty Hillesum (…) Etty Hillesum não teve problemas psiquiátricos graves porque nunca se foi tratar – porque ela tinha-os muito graves. Só que ela tratou-se doutra maneira, foi encontrar alguém que lhe fez descobrir que o caos dela era valioso, que ela tinha de viver com o seu caos, não dando vazão sem mais, mas convertendo-o num tesouro, numa mina, em que pudesse recolher a criatividade da sua própria vida».
Maria Filomena Molder, sobre as obras “Diários e Cartas” de Etty Hillesum, no Curso “Filosofia, Literatura, Espiritualidade” da Capela do Rato.
«O sofrimento principal de Ivan Iliitch residia na mentira – a mentira, por todos reconhecida, de que ele estava apenas doente e não moribundo, de que lhe bastava ficar calmo e tratar-se para que o resultado fosse uma coisa muito boa. Mas ele sabia que não, que por mais que lhe fizessem nada daí resultaria, que não haveria mais nada a não ser sofrimentos cada vez mais insuportáveis e, no fim, a morte. Esta mentira torturava-o, o facto de não admitirem o que já toda a gente e ele próprio sabiam martirizava-o, e a insistência na mentira sobre o seu estado obrigava-o, também a ele, a participar na mentira. Esta mentira, incidindo nele em vésperas da sua morte, uma mentira destinada a rebaixar o acto solene e terrível da sua morte até ao nível das visitas, dos cortinados e dos esturjões do almoço da família… era muito dolorosa para Ivan Iliitch».
Lev Tolstói, A Morte de Ivan Iliitch, Lisboa 2007 (p. 67).
«Renuncia a que se abra a porta. Nada deve abrir-se. Tudo está aqui. Tudo está dado no presente. E recorda-se em seguida que vieste para servir a Deus, abra-se a porta ou não».
Franz Jalics, Ejercicios de Contemplación
Foi Michel Serres, em Tempo de Crises, que apontou para este quadro de Goya: dois homens lutam, enquanto se afundam, cada vez mais, em areias movediças. Cada movimento e cada golpe os faz afundarem-se, aos dois por igual. Michel Serres percorre esta analogia com o planeta onde vivemos, que se deteora à medida que os governos se disputam. Serres defende o plural e o múltiplo, com as ciências naturais como interlocutores, como alternativa ao estéril dualismo.
Enquanto lutamos, afundamo-nos. Múltiplas são as leituras.
8*Então, a tua luz surgirá como a aurora,
e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se.
A tua justiça irá à tua frente,
e a glória do SENHOR atrás de ti.
9Então invocarás o SENHOR e Ele te atenderá,
pedirás auxílio e te dirá: «Aqui estou!»
Se retirares da tua vida toda a opressão,
o gesto ameaçador e o falar ofensivo,
10se repartires o teu pão com o faminto
e matares a fome ao pobre,
a tua luz brilhará na tua escuridão,
e as tuas trevas tornar-se-ão como o meio dia.
11O SENHOR te guiará constantemente,
saciará a tua alma no árido deserto,
dará vigor aos teus ossos.
Serás como um jardim bem regado,
como uma fonte de águas inesgotáveis.
12Reconstruirás ruínas antigas,
levantarás sobre antigas fundações.
Serás chamado: «Reparador de brechas,
restaurador de casas em ruínas.»
Isaías 58, 8-12
Do lugar onde temos razão
jamais brotarão
flores na primavera.
O lugar onde temos razão
é calcado e duro
como um saguão.
Yehuda Amichai (via Amos Oz, Caros Fanáticos, Lisboa 2018 p. 52)
Eremita de tipo moderno
ele bebe a cerveja num último reduto
e vai pelas ruelas em vez das avenidas
perdendo os autocarros, o metro, os mensageiros
que fluem sem ter rosto pela solidez do mundo.
Não vê televisão, isso não, nem está em rede
pois os olhos ficam presos e a alma não tolera
a serpente das imagens que emite servidão.
Leva os ícones celestes ajustados ao seu Deus
por natureza limpos, duma limpidez que impele
a um constante alento, a um amor constante
conforme consta oculto ao inconstante mundo.
Ele é o passante, o transportador de um vervo
na dificuldade e dor da mais obscura idade.
Carlos Poças Falcão, Sombra Silêncio (Guimarães 2018, p. 43).
Daqui, deste ruído, serei eu, Senhor, capaz
de te ouvir? Parece que meus olhos são mais prontos
a ver só as fissuras, os derrames e as úlceras
que assomam dos infernos – mas estão cegos para ti
embora tu os limpes, lhes dês luz e os procures.
Carlos Poças Falcão, Sombra Silêncio (Guimarães 2018, p. 24).
O visível
e o invisível
disputam-se sobre o feixe de água límpida
onde o dançador mergulha de
braços abertos.
A imagem que ele dá é a do mundo a recriar
que cada dia se oferece ao homem.
Edmond Jabès, Le Seuil Le Sable (via JPC)
(…)
A Escritura torna-se corpo, e o corpo torna-se salvação. Não é fácil, no entanto, retomar a escritura, o exercício da escrita, num movimento espaçado no tempo e no lugar. Quase sete anos depois da abertura da Fundamentos, como pode este espaço – agora apenas digital – continuar a ser um caminho de procura, de respiro, de leitura e de salvação no seio de uma rotina funcional e profissional?
Regressar às Escrituras, como o veado às nascentes das águas. Regressar à poesia, como fonte de sentido e de iluminação. Regressar à mística, para que também ela acompanhe as horas e os dias. Mas de um modo muito breve, minimal, apenas um sopro ou uma hora que salve o dia. Porque o fundamental não está aí, está nas crianças que correm, na comida que se prepara e oferece, no calor que se partilha. De resto, a atenção no que se realiza, enquanto se aguarda que a porta da lei se abra (Kafka) – uma porta que está aí, apenas, para mim.
Susbscribe to our awesome Blog Feed or Comments Feed