De Agustina Bessa-Luís:
«Sendo a fé um dom, como pode ser motivo de educação? Não pode realmente ser ensinada, mas sim irradiada. Os que a possuem podem significar a estrela-guia, a perseverança num encontro difícil de suceder, mas cuja esperança comove todo o nosso ser. É possível que a Igreja se volte para esse apostolado da fé que foi extremamente importante no seu começo. Não o velho sistema de grupos sectários que são o modelo dos processos políticos e que, quando se afirma um movimento e este toma amplitude, se eliminam.
Não é isso.Trata-se de focos de comunicação que dispensam a organização premeditada e até a linguagem elaborada, o discurso piedoso e a erudição duma exegese. Um interessar a alma na fé sem recorrer ao preconceito da santidade. Descobrir a imensa novidade da fé num mundo em que o próprio cristão vive de maneira pagã e singularmente a coberto dos antigos textos que esqueceu ou que desconhece completamente.
A prova de que o cristão vive como um bárbaro é o sentido que tomou a arte religiosa. Não é raro encontrar nas salas de convívio burguesas, juntamente com a televisão, ou a mesa de jogo, ou a instalação estereofónica para o gira-disco, um Cristo crucificado sobre a lareira, ou uma Virgem dourada em cima da cómoda de vinhático; ou objectos do culto, espalhados numa intenção decorativa, quando não um quadrinho de ex-voto que se foi buscar a uma capela remota ou à loja de um antiquário.
E depois essas mesmas pessoas, ao abrigo duma cultura sentimental, promovem toda uma campanha contra a modificação dos ritos, e censuram os prelados que caminham no sentido de não objectivar Deus e de não o integrar na platitude da imaginação humana. Deus significa luz; ser filho de Deus é, pois, ter origem na luz. Esta é uma metáfora que utilizavam os essénios do Qumran. Designa uma energia interior que ultrapassa a experiência da pessoa e o conceito de pessoa.
Não é fácil, para uma sociedade humana estreitamente ligada a uma objectivação de Deus que o mostra com uma consciência semelhante à nossa e que envolve todos os nossos articulados de vida, não é fácil, repito, desprender-se duma espécie de Deus nacional e tribal; como de resto a Bíblia o representa; como o criador dum mundo limitado em comparação com o que conhecemos hoje. Um príncipe, promulgador de decretos e que prometia como recompensa da obediência um lugar à sua direita, como se prometia aos áulicos deste mundo.
Cem anos depois da morte de Jesus, surgiu no Ocidente a ideia de Cristo como filho de Deus, concreta manifestação de Deus. Mas S. Paulo evitou sempre confundir Cristo com o Deus Único; a sua forte convicção monoteísta impedia-o de admitir uma incarnação de Deus. De certa maneira, o cristão da actualidade encontra-se nessa mesma posição. Ele sabe que há muito de idolatria numa explicação objectiva de Deus. Idolatria a que chamamos às vezes ciência, ou história, ou progresso, mas que não satisfaz a fé na nossa luz interior. A educação da fé tende a ser a descoberta dessa energia interior agora em vias de se desembaraçar dos velhos detritos mágico-religiosos que eram o suporte de aspirações e de desejos quase sempre inscritos no nosso quotidiano».
Agustina Bessa-Luís, in Contemplação Carinhosa da Angústia (via João Paulo)
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