O verbo descansar é tão essencial como qualquer um dos Verbos da Salvação que vimos até ao momento: comer, perdoar, caminhar, meditar, desejar, ouvir e escutar, recordar… Nos últimos 20 anos este verbo tem despertado a atenção de cientistas de várias áreas. Lembram-se daquela base de dados, o PubMed, de que já falámos, por exemplo, no verbo meditar? Se usarmos como palavra-chave “descansar”, a plataforma diz-nos que até junho de 2021 existem 170469 artigos relacionados com este tema. E, claro, motivado muito provavelmente pelas mesmas razões que a meditação suscitou, o interesse cresceu na viragem do milénio. Vamos ao fundamental.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac…
A rotação da Terra à volta do Sol dá-nos o dia e a noite. Em termos evolutivos, para se adaptarem a estas variações de luz e temperatura, as bactérias, os fungos, as plantas e os animais têm algo que se chama ritmo ou ciclo circadiano. Até as moscas da fruta, aquelas chatas que aparecem lá em casa sem sabermos muito bem como, as Drosophila melanogaster, dormem! Nos mamíferos, de um modo simples, temos um relógio biológico interno que é regulado quer pelas células, quer pelo núcleo supraquiasmático. A este núcleo chega a luz ambiente que, depois de uma quantas reações cá dentro, acaba por se traduzir na formação de melatonina. Entre os mamíferos dormimos todos de forma diferente: os elefantes dormem cerca de 4 horas; os tatus vinte horas; nos golfinhos e baleias metade do seu cérebro dorme enquanto a outra metade permanece ativa; os macacos dormem entre nove e catorze horas; os babuínos nove a onze horas; os chimpanzés dez horas e nós, seres humanos, dormimos 7 a 8 horas por noite. Este ciclo circadiano regula desde os processos fisiológicos até à forma como nos comportamos. Contrariar o nosso ciclo circadiano não é boa ideia! Quando o nosso estilo de vida está alinhado com este relógio interno que é regulado também pelo dia/noite, por princípio tudo corre melhor. Há vários estudos que apontam para maior prevalência de certas doenças, quando, por exemplo, se trabalha por turnos.
O que é que acontece ao cérebro quando descansamos?
Em ciência, o que para nós em 2021 é considerado um dado adquirido, já foi discutido, às vezes acesamente, entre pares. Que o diga Bharat Biswal, engenheiro elétrico de formação, quando numa conferência no início da década de 90 foi insultado por um reputado cientista que lhe disse que ele e a sua investigação deviam ser enterrados, que tudo não passava de lixo, que aqueles resultados eram um produto de ter sido deixado «à solta». Retrocedamos aos primórdios da ressonância magnética funcional por imagem. Basicamente, com esta técnica conseguimos ver imagens de diferentes áreas do cérebro a funcionar conforme o consumo de oxigénio. Bharat Biswal, conta o próprio num artigo, andava às voltas com um ruído de fundo que aparecia nas imagens do cérebro mesmo quando as pessoas estavam deitadas, em repouso. Eliminou o sinal cardíaco, o respiratório, mas mesmo assim havia um sinal menor que estava presente no cérebro. Tinha chegado à conclusão que um cérebro de uma pessoa em descanso estava, ao contrário do que se pensava, a trabalhar! Era o que mais tarde se veio a designar por rede de modo padrão. Esta rede é muito complexa, gasta quase tanta energia como quado o cérebro está concentrado, varia conforme a idade e está relacionada com a atividade cognitiva e emocional relevante, a autoconsciência, a memória, a capacidade para imaginar o futuro, a empatia, o juízo moral, a sanidade, a criatividade, a inteligência.
O cérebro das crianças descansa?
Como descansa o cérebro de uma criança? Esta é uma pergunta que o laboratório de Susan Perlman, da Universidade de Washington em Saint Louis, tenta responder. Como vimos no verbo recordar, à nascença temos 100 mil milhões de neurónios. Dizer a uma criança, até aos 8 anos, «está aí quietinha, deitadinha, descansa enquanto tiramos aqui umas fotografias ao teu cérebro», é complicado porque o natural é que não esteja a descansar, mas atenta ao próximo estimulo. Experimentalmente ainda há muito a fazer nesta área para eliminar fatores externos e internos que introduzem erros nas medições. A teoria que este grupo de cientistas propõe é que o cérebro de uma criança não descansa como o de um adulto, já que períodos mais longos de descanso representam, ao contrário de um adulto, um aumento do controlo cognitivo. Ao longo da vida o cérebro também aprende o que é descansar.
«Preciso de passar cinco minutinhos pelas brasas»…
E porque não? Há vários estudos que apontam para uma melhoria das funções cognitivas, da regulação emocional e o domínio de si mesmo depois de uma sesta. Não é uma coisa só de portugueses ou espanhóis. Do mundo anglo-saxónico temos, por exemplo, Charles Darwin, J. R. R. Tolkien e Winston Churchill, que a fazia mesmo em plena II Guerra Mundial. E não é uma coisa de antigamente ou apenas para alguns sectores de atividade nalgumas zonas do mundo. No ritmo frenético a que se vive, dominado pela luz azul, é essencial respeitar o ritmo circadiano. Arianna Huffington, escritora e empresária, cofundadora e diretora do Hufftington Post e fundadora e diretora do Thrive Global, tornou-se defensora acérrima da sesta como pausa no trabalho depois de ter acordado na sua secretária com sangue por desmaiar de cansaço. E se no início fechava a cortina do seu gabinete para dormir a sesta, passou em seguida a deixá-la aberta, para incentivar os seus colaboradores a fazerem o mesmo. E conta a própria que depois das 20 horas não há correio eletrónico, telefones a tocar ou trabalho…
Ainda há muitas perguntas em aberto, e termino com a sensação que ficou muito por contar. O tema é vasto. Apenas uma certeza: o descansar, o devaneio mental (a «cabeça na lua») e o dormir não são um luxo. São fundamentais para vivermos e vivermos bem.
2. «O sonho é criador»
O título é criação de uma extraordinária escritora portuguesa, Maria Gabriela Llansol que, ao longo de vários anos, manteve um diário no qual registava as memórias dos seus sonhos. Desse património rebelde – rebelde porque não controlado pela nossa consciência, pelos valores éticos, pelos projetos e tarefas a que dedicamos os nossos dias – Llansol retirou pistas e imagens que encontrariam lugar na sua escrita. Sonhar é uma das dimensões fundamentais do nosso tempo de descanso, a que talvez dediquemos menos atenção – por descansar entendemos momentos ou atividades que planeamos e executamos, como ler, caminhar ou simplesmente sentar. As ciências da mente que, no século XX, conheceram um progresso impressionante – a psicologia, a psiquiatria, a psicanálise – reorientação a nossa atenção para esse património que tanto tempo dispõe no nosso dia a dia e que, não obstante, permanece desapercebido. E não se trata aqui dos “sonhos” que temos quanto estamos acordados, das nossas esperanças, projetos, ambições; aqui têm lugar, antes, os sonhos que não construímos, elaboramos ou projetamos, pelo menos de modo consciente.
As chaves de compreensão fornecidas pelos conhecimentos científicos permitem ler a uma nova luz um património antigo no qual os sonhos constituem uma linguagem importante: as Escrituras. A redescoberta do valor significante dos sonhos permite olhar com uma nova atenção o estilo literário dos sonhos que percorre as páginas das Escrituras. Nesse sentido ganha pertinência a síntese elaborada pelo livro de Job:
«Deus fala, ora de uma maneira, ora de outra, mas o homem não o entende. Em sonhos ou em visões noturnas, quando o sono profundo cai sobre os homens adormecidos no seu leito, então, abre-lhes os ouvidos e assusta-os com as suas aparições» (Job 33, 14-16).
Desde o seu princípio que a Escritura de Israel surge permeada por uma tensão fecunda entre o primado da Palavra tatuada na lei, na Escritura e nos oráculos proféticos da Aliança, e os diversos modos com que Deus fala a cada uma das personagens bíblicas. Ainda que mais tatuados nas camadas mais primitivas do texto bíblico, a linguagem dos sonhos permanece à medida que a Escritura se forma, até chegar ao Novo Testamento. Através da leitura – já habitual nos Verbos da Salvação – de três textos bíblicos, procuraremos relevar como este estilo literário pode continuar a fazer sentido para os dias de cada um de nós.
Quando Deus descansa
«Foram assim terminados os céus e a Terra e todo o seu conjunto. Concluída, no sétimo dia, toda a obra que tinha feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por Ele realizado.
Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação. Esta é a origem da criação dos céus e da Terra» (Gn 2, 1-4a).
O chamado primeiro relato da Criação (o livro do Génesis tem dois relatos: o texto seguinte, que meditaremos, pertence ao segundo relato) segue o esquema de sete dias de criação, com o sétimo dia, o sábado, a ser o dia de descanso divino. O autor ou a comunidade que elaborou este relato apresentam-no à imagem da experiência de Israel, que inaugurou, numa originalidade do mundo antigo, a noção de um dia de descanso consagrado ao Senhor. Os discípulos de Jesus, após a manhã de Páscoa, continuarão esta tradição, transmitindo-a do sábado para o primeiro dia da semana. Pensar no verbo descansar na Bíblia conduz-nos de imediato para este paradoxo de ver a Deus a descansar da sua obra criadora. As tradições espirituais judaica e cristã dedicaram-se, ao longo da sua história, a descobrir sentidos simbólicos e espirituais para este descanso: um desses sentidos, presente já no Novo Testamento, aponta para a Ressurreição de Jesus como a entrada da humanidade no seio de Deus.
Uma das tradições, presente sobretudo no judaísmo, apresenta esse descanso de Deus como um espaço aberto, concedido, partilhado pelo Senhor do Universo com o ser humano: Deus retira-se no final da sua obra, não por se ausentar ou demitir do seu senhorio sobre a criação, mas para não absorver, com a sua totalidade, a liberdade do ser humano e o seu papel na história. Até o próprio Deus é capaz de se retirar, criando uma aliança com o ser humano (através de um povo, Israel) que o respeita como parceiro, como interlocutor, e não como um mero servo. O Novo Testamento conhecerá esta tradição através do rosto de Jesus, daquilo a que designa de kênosis (Flp 2, 7): o seu “esvaziamento”, a sua entrega até ao fim, o seu despojamento. Quase um Deus que deixa de ser Deus, um «Deus nulo» na expressão do poeta Ramos Rosa: trata-se de uma linguagem paradoxal, que nunca exprime senão «a ponta do manto» de um mistério que ultrapassa em muito a nossa linguagem.
Podemos assim compreender como, nas Escrituras, o descanso é uma dimensão fundamental da vida humana, a quem até o próprio Criador se expõe como exemplo. Um descanso que não é uma demissão, um adormecimento das faculdades e dos sentidos (como o permitido pelos meios de entretenimento, das redes sociais às séries televisivas), cuja distração mantém na verdade a estimulação neuronal. O descanso dá-se também no dia em que já não somos nós a criar, em que permitimos que seja o outro a continuar – ou a renovar – o nosso percurso. É também, no fundo, criador, como um sonho.
O sono de Adam
«O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!”» (Gn 2, 20-23).
Não nos encontramos aqui diante de um sonho, no qual Deus transmite uma missão ou profecia a cumprir, mas sim um sono ainda mais profundo, no qual é o próprio Deus quem atua. A passividade é ainda mais total e radical. Como ensina o sábio a um seu filho e discípulo no livro dos Provérbios:
«Bendita seja a tua fonte! Regozija-te com a companheira da tua juventude, corça amorosa, gazela encantadora. Inebriem-te sempre os seus encantos e as suas carícias sejam sempre o teu enlevo» (Pv 5, 18-19).
Se a narrativa da formação da mulher (isshá no hebraico original) do homem (ish) poderá supor uma secundarização ou dependência daquela em relação a este, o facto de o autor bíblico recorrer à figura literária do sono permite superar essa possibilidade: ambos são obra criadora de Deus, o homem apenas desperta para a admiração e o louvor. Aí surgem as primeiras palavras que o ser humano pronuncia no livro do Génesis. O surgimento da linguagem dá-se após o reconhecimento de uma falta, da ausência de um interlocutor para o homem, papel que nem os animais, nem o próprio Deus podem desempenhar de um modo perfeitamente correspondente. É a esta aliança primordial, vocação anterior ao episódio do primeiro pecado ou rompimento, que Jesus se referirá nos Evangelhos e que será celebrado na Escritura, desde os Profetas ao livro do Cântico dos Cânticos, no Antigo Testamento, e das cartas de Paulo ao livro do Apocalipse, no Novo Testamento.
Mas atendamos ao elemento literário do sono, e que dicas nos poderá revelar. No surgimento da primeira relação, do primeiro encontro, há, para este texto bíblico, uma experiência de passividade, de acolhimento, de encontro com o outro cuja origem não depende de mim, não foi formado por mim nem passou pelo meu controlo ou ação. O sono, como o descanso ou a passividade, também tem uma fecundidade nas relações: a fecundidade de permitir que o outro seja na sua diferença (e que diferença mais radical existe do que a de entre uma mulher e um homem?), naquilo que lhe é próprio, na sua liberdade, capaz de gerar em nós a surpresa e a admiração mas também a defesa, a recusa e a manipulação. Para a linguagem guerreira que percorre muitas das páginas do Antigo Testamento, o sono é a posição de maior vulnerabilidade para um homem, quando as suas defesas estão em baixo, quando os seus projetos se podem deitar a perder, e até quando a morte, essa impotência total, o pode visitar. Se o homem é formado do barro da terra para que a cultive e trabalhe – a vocação ao trabalho ativo, aos projetos, aos “sonhos acordados” – também lhe recorda que o ser humano é criatura, que nem tudo depende dele, a começar pelo outro. E que, numa vida de amor, até a maior passividade, confiança e entrega podem ser mais fecundos que a morte: foi esse paralelo que os cristãos dos primeiros séculos interpretaram quando, da morte de Jesus, novo Adam, surgiu sangue e água (Jo 19, 34), a plenitude da sua Ressurreição, de quem foi formada a Nova Humanidade e a comunidade dos discípulos, a Igreja (Ef 5, 32).
O sonho de José
«O nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente. Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados”» (Mt 1, 28-21).
Os primeiros dois capítulos do Evangelho de Mateus gostam dos sonhos: o Anjo do Senhor (o mensageiro que transmite uma revelação divina) aparece a José por três vezes e uma vez aos magos do Oriente que foram ver o Menino, avisando-os a não passar por Jerusalém no regresso ao seu país. Quanto a José, além da passagem transcrita, recebeu uma visão em sonhos para fugir para o Egipto e outra para de lá regressar. As três vezes têm por pano de fundo a figura de Herodes que, como o faraó do livro do Êxodo, quer impedir que o povo de Deus seja guiado pelo novo Moisés, o Messias.
A passagem de Isaías 7, 14 é o pano de fundo deste relato: num contexto de perigo para a sobrevivência de Israel, Isaías apresenta ao cético rei Acaz a gravidez da sua esposa como o sinal divino de que a dinastia de David continuará, e com ela a fidelidade de Deus à sua aliança com Israel. Ao contrário de Acaz, que não confia nesse sinal profético, José segue os passos de um outro José, um dos doze filhos de Jacob, que é vendido pelos irmãos no Egipto e se torna intérprete de sonhos (Gn 41, 15). José pertence a essa tradição sapiencial, capaz de acolher o extraordinário da presença divina nas dificuldades e perseguições de um contexto hostil, onde até a lei religiosa ordena a difamação e consequente castigo. A capacidade de escuta e a abertura à revelação de Deus permitem a José, o justo, perceber o mistério do Outro, uma fecundidade nova cujo sinal é o nascimento de um filho, e cuja virgindade materna aponta para uma salvação a cumprir-se na história.
Encontramos nesta passagem já não apenas a relação entre uma mulher e um homem, mas também a geração de um novo ser, de um filho, cujo mistério de fecundidade pertence, no seu mais íntimo, a Deus. O Messias é por excelência o sinal dessa novidade, dessa, dessa diferença radical de alguém na sua liberdade em relação aos pais, à família, ao contexto social, à tradição. José significará aqui, também, a fidelidade de uma história, da Aliança de David e de Abraão: é dela que vem o Messias. Mas, se é dela que vem, é também a ela que ultrapassa e que supera: o Messias pertence a Deus, a sua vocação é universal, a sua salvação vai muito mais além da lei e do sangue. Os sonhos serão, aqui, expressão dessa novidade, dessa rutura que pede a José uma confiança, uma fé que irá além da sua compreensão e das suas forças. E não sucede assim cada ser que nos é confiado, a que nos é pedido que dediquemos a nossa atenção e o nosso trabalho? E esse alguém será sempre diferente de nós, da nossa mentalidade, das nossas expectativas? Os sonhos são uma linguagem outra: saem do nosso íntimo, advém de dentro de nós, mas a sua linguagem surge quando silenciamos os sentidos, os sentimentos, os projetos. Por vezes, somente assim o Outro – um filho, quem sabe – pode interromper a marcha da nossa identidade e tornar-se nosso interlocutor, abrindo-nos caminhos novos no deserto da nossa vida.
Susbscribe to our awesome Blog Feed or Comments Feed