Mais uma novidade em castelhano na Fundamentos:partilho em português a Introdução do livro por se tratar de uma breve e muito rica narrativa sobre a vida de Jesus (os sub-títulos são meus, para facilitar a leitura):
«A história de Jesus é talvez a história mais importante de toda a Humanidade. Não foi um “caudillo” militar nem um imperador, mas um profeta e pretendente messiânico da Galileia, que subiu a Jerusalém para instaurar o Reino de Deus, e foi condenado pelo governador Poncio Pilatos, em 30 d. C., porque a sua pretensão chocava contra o direito imperial de Roma. Assim mataram-no, colocando na sua cruz INRI (Jesus o Nazoreo, Rei dos Judeus; cf. Jo 19,19), para avisar a possíveis seguidores, e morreu assassinado como milhares e milhões de vitimas, quase sempre esquecidas. Mas a sua memória perdurou, marcando a história dos homens.
Tudo poderia ter terminado na cruz, como costuma acontecer em outros casos, mas os seus melhores seguidores (Maria Madalena e Pedro, e outros posteriores como Paulo) mantiveram o seu projecto e afirmaram que Deus o havia acolhido na sua Vida, e que se encontrava vivo (ressuscitado) e haveria de voltar em breve para culminar a sua obra. Não voltou, num sentido externo, como alguns esperavam, mas a sua forte recordação marcou a partir daí a nossa história. Logicamente, muitos escreveram a sua vida, e já o evangelista João afirmava que eram incontáveis os livros que se poderiam dedicar à figura de Jesus (Jo 21,25). Apesar disso, eu também quis escrever uma nova história da sua vida, pensando que posso contribuir com algo, numa perspectiva científica e crente.
Os crentes confessam que Jesus foi e é a encarnação de Deus (cf. Jo 1,14), e dessa forma muitos estudam e expõem a sua história tomando como base a sua divindade. Eu também sou crente, mas quero escrever a partir de baixo, quer dizer, a partir do seu projecto messiânico, situando-o dentro da teia de interesses politico-sociais (económicos) do seu contexto, aos quais ele quis opor-se, e por isso foi condenado à morte.
Historicamente foi um nazoreo messiânico, quer dizer, um judeu vinculado à memória de David e comprometido com a causa de Deus, quer dizer, com a justiça e a vida dos pobres e excluidos, contra as estruturas de um poder socioreligioso imposto pelos sacerdotes de Jerusalém e pelos soldados de Roma. De um modo consequente, Pilatos e os sacerdotes condenaram-no.
Nessa linha, muitos judeus actuais continuam a dizer que os cristãos são nosrim, nazoreos, seguidores de um nazoreo messiânico (rei fracassado), um herege que não contribuiu com nada de significativo no drama real da vida do seu tempo. Outros, geralmente não judeus, evitam ou desvalorizam a sua história, dizendo que nasceu num canto obscuro do império (Roma), longe dos centros de influência do dinheiro, da politica e da cultura do seu tempo, e que a sua vida continua a ser opaca, pelo pouco que podemos conhecê-la e pela carga que nela deixaram as ideias religiosas posteriores, de tipo idealista ou de propaganda religiosa já antiquada.
Mas tudo isto é apenas uma meia-verdade, porque Jesus foi um judeu que ofereceu ideias e projectos essenciais no seu tempo, e porque a Galileia e em especial Jerusalém eram então um think tank, um laboratório imenso de tarefas e práticas sociais, culturais e religiosas que ainda continuam a definir o nosso tempo. Não voltou a surgir depois de Jesus ninguém que tenha colocado com a mesma radicalidade os temas essenciais da vida humana, com os seus riscos, promessas e exigências.
Sou, como disse, cristão e acredito que Jesus foi (e continua a ser) Filho de Deus, mas estou convencido de que a sua vida pode e deve ser exposta em chave histórica, sem apelar (nesse plano) a intervenções sobrenaturais. Creio que tudo nela é humano, ainda que tudo se possa entender como história e presença de Deus, e assim quis mostrá-lo neste livro, a partir de uma tradição exegética antiga e moderna (cristã e não-cristã), numa sociedade que perdeu em parte a sua fé religiosa, mas que continua a procurar apaixonadamente o rasto de Deus (numa linha próxima a Jesus). De modo especial destaquei as implicações económicas do projecto de Jesus, que continuam a ser, a meu ver, essenciais para colocar e resolver, num plano superior, os problemas básicos da humanidade do nosso tempo (ano de 2013).
Chamava-se Jesus (em hebraico Yeoshua, Deus-Salva), como o primeiro conquistador israelita (Josué=Jesus). Era judeu da Galileia e nasceu por volta do 7-6 a. C. (os que fixaram o calendário comum ou cristão equivocaram-se, supondo que tinha nascido no ano 1 d. C.). Foi um camponês de origem e artesão de ofício, não letrado (ou escriba, homem de letras), de modo que quiçá não lesse correntemente, mas não se pode chamar de analfabeto pois, como veremos, tinha uma intensa consciência social e conhecia bem as leis e costumes do seu povo, de modo que discutiu sobre elas com outros mestres e lideres sociais. Foi trabalhador, como o seu pai, e cresceu em contacto com uma realidade social e religiosa que, a seu ver, se opunha às promessas de Israel e oprimia aos seres humanos.
Um dia, sendo maduro e, pensa-se, solteiro, abandonou o trabalho e dirigiu-se ao deserto, a oriente do Jordão (Pereia), onde seguiu a um profeta chamado João Baptista, que exigia a conversão e anunciava o juizo de Deus. Depois de um certo tempo, quando João foi aprisionado por Herodes Antipas, rei (tetrarca) da Galileia, abandonou o deserto, junto ao rio, para iniciar o seu projecto de Reino na terra prometida, precisamente na Galileia. Estava convencido de que a etapa de opressão havia terminado, e assim o proclamou, anunciando a chegada do Reino de Deus, num tempo e num espaço em convulsão, sob o domínio de Roma. Teve uma grande capacidade de relação, um poder especial para curar e animar aos excluidos (enfermos, pobres…), a quem convidava a partilhar vida, mesa e esperança, oferecendo-lhes o Reino de Deus.
Conseguiu uma audiência e creou comunidades de amigos na periferia camponesa, ainda que tenha suscitado a rejeição da autoridade estabelecida, a quem acusou de estar aliada com Mamón, que é o anti-Deus (o dinheiro absolutizado). Movido por um forte impulso interior, convencido da verdade e urgência do seu projecto, subiu a Jerusalém como «messias» (representante de Deus), para ali instaurar e culminar a sua obra. Alguns o acreditaram, mas o seu intento fracassou, pois os sacerdotes opuseram-se, grande parte dos discípulos fugiu e o governador de Roma mandou crucificá-lo, acusando-o de se fazer «Nazoreo, o Rei dos Judeus». Com a sua morte terminou num plano a sua história, mas por outro lado se fortaleceu, pois a tribo daqueles que o haviam amado seguiu-o até ao dia de hoje (cf. Josefo, Ant. XVI; 63).
Jesus/Josué, a quem remete o seu nome, havia sido um conquistador israelita, e a Biblia assegura que Deus o ajudou, pois o sol deteve-se e o dia se alargou, enquanto caíam pedras sobre os soldados do exército contrário a quem os hebreus atacaram, para se apoderarem da terra (cf. Jos 10,12-13). Jesus, por outro lado, morreu na cruz, abandonado, ao que parece, pelo Deus verdadeiro, em cujo nome havia proclamado o Reino, opondo-se aos representantes de Mamón, o rei do mundo. Tácito recorda-o como «inspirador de uns réus odiados pelo povo, executado no tempo de Tibério por Pôncio Pilatos (cf. Anales 15,44,2-3), mas os cristãos proclamam-no como Filho de Deus.
A história do primeiro Jesus-Josué recolhida pela Bíblia no seu livro (Jos), parece apenas uma lenda victoriosa, destinada a realçar a protecção de Yahvé sobre um povo vencedor e eleito. Ao contrário, os Evangelhos recolhem os traços principais da história de Jesus, com o seu itinerário pessoal e a sua proposta económico-social e religiosa (que eram, a seu ver, inseparáveis). Certamente, fracassou num plano (ao nível da carne, como diz S. Paulo: Rom 1,3-4), e não lhe foi possivel instaurar o Reino; mas os seus seguidores interpretaram o seu fracasso como sinal e presença de Deus, que o ressuscitou de entre os mortos.
Esses seguidores e muitos outros que depois formaram o seu movimento reinterpretaram a sua vida e re-crearam a sua mensagem nuns livros (evangelhos, escritos entre 70 e 100 d. C.), que não pretendem ser as crónicas de um morto, mas a memória e mensagem de alguém que está vivo, como o testemunham as cartas de Paulo, escritas entre 49 e 65 d. C., quer dizer, vinte anos depois da morte de Jesus. Alguns dos seus seguidores, ao que parece mais piedosos, destacaram de tal modo a sua glória (ressurreição) que acabaram por esquecer a sua história humana e concebê-lo apenas como uma entidade espiritual, um Deus entre os deuses do Oriente, estabelecendo assim a primeira “heresia” sobre Jesus, que consistiu em negar a sua humanidade (não a sua divindade, como se faria hoje). Pois bem, o conjunto da Igreja, começando pelo evangelho de Marcos, respondeu (a esta heresia) defendendo e re-contando a história humana de Jesus, com o seu projecto económico-social.
Nessa mesma linha, a primeira intenção dos Evangelhos não foi mostrar que Jesus era Deus (Filho de Deus), mas que o Filho venerado de Deus havia sido e era um homem da história. O risco não consistia então em rejeitar ao Deus (de) Cristo, mas ao homem Jesus, com a sua mensagem de cura, partilha de bens e esperança de Reino. Os quatro evangelhos, escritos entre 70 e 100 d. C., com tradições e memórias anteriores, não quiseram defender o dogma divino de Cristo (que eles pressuponham), mas afirmar a história humana de Jesus, o Cristo, no contexto messiânico de Israel. O dificil não era escrever um tratado divino sobre o Cristo, mas era contar a história humana de Jesus, que era Filho de Deus (Cristo da fé), sendo um messias fracassado (crucificado).
Este livro quer seguir na linha dos evangelhos, expondo de uma forma ordenada e coerente os seis momentos básicos da vida de Jesus, empregando para isso os métodos científicos, mas deixando aberto o caminho da fé, como o deve fazer uma investigação histórica verdadeira. Este é um livro que pretende ser simples, mas quiçá ofereça certas dificuldades para os leitores não iniciados, a quem devo advertir que se situa e se deve ler em três níveis.
Num primeiro nível, elaborei um texto corrido, que se possa ler com facilidade, deixando um pouco de lado os textos em letra pequena que se inserem no próprio texto, e as notas que estarão no final de cada capítulo. Os esquemas em letra pequena, que oferecem o segundo nível de leitura do texto, são recompilações e expansões do argumento principal; eles possuem uma certa autonomia, mas não se podem ler separadamente, pois integram-se no desenvolvimento do tema. Finalmente, o terceiro nível, que é algo mais complexo, vem dado pelas notas que estarão no final de cada parte, quase todas de tipo erudito, que permitem situar o tema num contexto de investigação ou de crítica exegética.
Quero, por isso, que este livro se possa ler de modo corrido, sem necessidade de acudir em cada caso aos esquemas, e menos ainda às notas, mais académicas, que podem ser e são muito importantes num segundo nível de leitura. De todas as formas, cada leitor poderá seguir as suas preferências, tendo em conta que o tema do livro é muito simples (a história de Jesus é densa, mas não muito compliacada num sentido “filosófico”), mas imensamente rico, como mostrarão algumas notas e, em especial, a bibliografia final, relativamente extensa, para aqueles que queiram aprofundar de um modo mais pessoal a história de Jesus. Eis as seis partes do livro:
1- No princípio. Origem do Evangelho de Jesus, João Baptista. Era um judeu messiânico e a sua vida se encontrava “anunciada” pela história e profecia israelita. Nasceu provavelmente em Nazaré (até ao ano 6 a. C.), numa família nazoreia, comprometida com a causa de Israel; a sua mãe chamava-se Maria. Viveu num tempo de forte crise económica e social, e trabalhou como artesão (camponês sem terra). Havia cumprido já os trinta anos quando se fez discípulo de João Baptista, um profeta cuja doutrina partilhou durante algum tempo, e recebeu o seu baptismo, baptizando, por sua vez, a outros, que esperavam o juizo iminente de Deus. O seu encontro com João marcou o começo do seu próprio movimento messiânico, que ele assumiu depois de ter recebido um chamamento de Deus, com rasgos novos, que o levaram a proclamar o Reino de Deus na Galileia, a sua terra, o lugar onde se havia formado e trabalhado como artesão.
2. Começou na Galileia. O começo do Reino. Respondendo à sua experiência pessoal, depois da prisão de João (justiciado), começou a proclamar a boa nova de Deus na Galileia, onde transcurreu a maior parte da sua actividade como profeta nazoreo. Estava convencido de que Deus o enviou a proclamar o Reino e assim o fez, anunciando e preparando a sua vinda, como profeta sanador (animando-curando os enfermos) e exorcista, enfrentando-se ao poder do Diabo (quer dizer, libertando, oferecendo humanidade aos possessos). Soube que havia chegado o fim da opressão, e que a luta decisiva pela nova história de Deus (e dos homens) não era militar (contra Roma), mas humana, contra o Diabo, manifestado de um modo especial nos possessos, e expresso na injustiça económica, representada por Mamón. O seu forte programa encontrava-se fundado na certeza de que Deus é Pai, e quer que os homens acolham o seu Reino salvador, vivendo e partilhando a vida como irmãos.
3. Estratégia messiânica, um projecto de Reino. Foi, antes de tudo, um crente convencido não só de que Deus actua, como também de que o faz agora, neste tempo, de um modo gratuito e poderoso, perdoando os homens, para assim criar uma nova humanidade, conforme as promessas de Israel. Por isso fundou um grupo de Reino, família de amigos e filhos de Deus, com os pobres e excluídos, com quem abriu um caminho de humanidade (Reino de Deus), iniciando uma estratégia de pão partilhado, perdão, amor mútuo e reconciliação. Assim quis vincular aos que antes estavam divididos, aos pobres e excluidos sociais (a quem podemos chamar de itinerantes) com os proprietários (a quem podemos chamar de sedentários), criando uma família onde todos pudessem partilhar a vida e ser irmãos. Para isso expandiu o seu programa de Reino, superando a pura justiça (o melhor de talião), para se abrir de forma paradoxal (parabólica) a um perdão mais alto, no qual se podem vincular em amor concreto os antes divididos.
4. Caminho de Jerusalém. Tu és o Cristo! Não falou em abstracto, nem ofereceu um programa genérico de purificação interior, mas iniciou um movimento concreto de Reino, fundado na acção poderosa de Deus, começando na Galileia. Mas, passado algum tempo, tomou a decisão de subir a Jerusalém, a fim de proclamar e implantar o Reino na cidade das promessas. Foi celibatário ao serviço do Reino, a partir dos pobres do seu tempo, escolhendo a uns discípulos e amigos que o acompanharam, especialmente aos Doze, representantes das tribos de Israel. Não procurou dignidades, mas actuou simplesmente como filho do homem, ser humano, para criar uma familia ou fraternidade universal, fundada na palavra do Reino e na vida partilhada, mostrando-se muito crítico em relação às instituições religiosas e sociais que se empenharam em manter a ordem estabelecida. Os seus mensageiros anunciaram a chegada do Reino na Galileia, mas os galileus no seu conjunto não aceitaram a sua proposta, de modo que (quiçá por isso, mas sobretudo por impulso de Deus) tomou a decisão de subir a Jerusalém, apresentando ali o seu projecto messiânico.
5. Jerusalém: a próxima taça no Reino. Havia actuado fundamentalmente na Galileia, mas a própria dinâmica do seu movimento (e o facto de que os galileus nos seu conjunto não aceitaram a sua mensagem) impulsionou-o a subir a Jerusalém como Messias (portador do Reino), e esse gesto (subida) constitui o acontecimento decisivo da sua história. Não veio com armas para se opor aos soldados de césar ou aos sacerdotes do templo, de modo que não teve mais poder que a sua palavra de anúncio e promessa. Assim chegou, rodeado de um grupo de discípulos que partilharam o seu projecto, mas não a sua forma de o realizar, à cidade sagrada para instaurar publicamente o seu Reino, esperando pela resposta de Deus. Outros prometeram prodigios espetaculares (divisão do Jordão, queda dos muros de Jerusalém…), ele apenas ofereceu o sinal da sua vida, ao serviço dos pobres, e entrou como rei da paz, enviado de Deus, sobre um asno, anunciando o final do templo. Mas os sacerdotes e os soldados não aceitaram a sua mensagem, de modo que ele pôde presentir a sua morte à mão daqueles. Apesar disso, teve uma ceia com os seus discípulos e prometeu-lhes que a próxima taça a tomariam no Reino. Com essa certeza foi ao horto das Oliveiras, à espera da vinda de Deus, mas foi Judas quem chegou, um dos Doze, para o prender, e o resto dos discípulos fugiu.
6. INRI. Jesus nazoreo, rei dos judeus. Subiu como testemunha e iniciador (Messias) do Reino de Deus, disposto a dar a vida, e assim o proclamou numa ceia de despedida, partilhando todo o seu projecto (corpo e sangue) com os seus discípulos. Mas eles, no seu conjunto, não conseguiram (não quiseram) segui-lo até ao fim, de modo que deixaram-no só; e dessa forma morreu, rejeitado pelos sumo-sacerdotes do templo e crucificado por ordem do governador romano, sob a acusação de se fazer rei nazoreo dos judeus. Foi torturado sem piedade e clamou a Deus da cruz, como indicam (seja históricas ou simbólicas) as suas últimas palavras: “Porque me abandonaste?” (Mc 15,34). Num sentido, fracassou como Messias (cf. Rom 1,3-4) e apenas umas mulheres amigas o acompanharam de longe enquanto morria (Mc 15,40-41). Enterraram-no provavelmente os mesmos que o haviam condenado, numa fossa comum (pois segundo a lei judía os mortos na cruz eram impuros, especialmente na Páscoa). Mas, passado um tempo (três dias!), ali onde muitos afirmavam que tudo havia terminado, alguns seguidores, começando pelas mesmas mulheres, voltaram sobre si, dizendo que Deus o havia ressuscitado e iniciando a partir da sua memória o caminho da Igreja.»
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