Fundamentos

Demónios…

Recentemente tenho visto muitas discussões à volta do tema do “demónio”. Isto recordou-me o livro de González Carvajal, de que partilho um excerto (traduzido), com uma pequena explicação.

Por motivos profissionais, tenho de, de vez em quando, frequentar fóruns e grupos de debate no âmbito religioso – por vezes saio enriquecido, mas à força de muita filtragem.

Recentemente reparei em algo interessante: o tema do “demónio”. Quando alguém (incluindo eu próprio) lança algum artigo ou questão sobre os “demónios” reais que podemos encontrar (as desigualdades na qualidade de vida, seja local, seja global, as enormes fortunas alojadas em paraísos fiscais, os migrantes que chegam em cascas de noz a Lampedusa, etc., etc.), as reacções são mínimas (questionam até o lugar deste tipo de questões em fóruns “religiosos”).

Mas quando se trata do tema “teórico” ou doutrinal do demónio (a tender para o exorcismo)… as discussões não têm fim.

Recordei-me neste contexto de um livro de Luis González Carvajal, cujo título é precisamente «El Hombre roto por los demonios de la economía: El capitalismo neoliberal ante la moral cristiana». O autor é professor de ética social cristã na Universidade de Comillas, em Madrid, e dedica muito do seu trabalho de investigação e divulgação à posição cristã perante a actual crise económica, pondo o dedo na ferida em relação a muitas das desumanidades do sistema económico actual.

Partilho aqui um excerto, de um livro que merecia bem ser oferecido em português (já pensei em traduzi-lo mas… e a edição? Pode sair que um dos capítulos constitua um Caderno Fundamentos). «Diábolos» significa, no grego, «o que separa, o que divide» em oposição a «parábola» que significa «o que junta, o que une». O que é que, hoje, separa e divide os seres humanos?

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«Segundo as Nações Unidas, na actualidade existem mais de 200 milhões de imigrantes internacionais, e devemos supor que, ao longo do século actual, o fenómeno terá um aumento. Segundo as previsões das Nações Unidas, a população mundial continuará a aumentar até ficar estabilizada nos 10.200 milhões de pessoas dentro de 100 anos; e 98% do crescimento demográfico terá lugar nos países pobres. Estes números, evidentemente, não poderão ter um grande rigor matemático, mas dão uma ideia do problema que se avizinha. Como disse o dr. Mahbub ul Haq, ao apresentar o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano de 1992, é inevitável que as pessoas procurem as oportunidades se as oportunidades não as encontrarem a elas. Por exemplo, um inquérito realizado em Marrocos revela que 72% dos nossos vizinhos do sul deseja emigrar e entre os jovens de 21 a 29 anos a percentagem atinge os 89%.

Mas chegados a este ponto devemos chamar a atenção para um detalhe deveras significativo. Os sinais verdes que, como vimos, permitem a livre circulação de mercadorias e capitais por todo o mundo convertem-se em semáforos vermelhos quando se trata dos seres humanos. Dito claramente: o programa liberalizante chega apenas até onde beneficia os ricos, e detém-se justamente onde poderia começar a beneficiar os pobres. “Os apóstolos do neo-liberalismo ficam pálidos diante da pura possibilidade de liberalizar o mercado mundial da mão-de-obra” (J. García Roca).

No entanto, nenhuma lei da emigração, por muito repressiva que seja, poderá travar as migrações. Brahim – um dos poucos sobreviventes do naufrágio de uma barcaça ocurrido a 16 de Setembro de 1998 – em nome de todas as barcaças do mundo, dizia: «Ninguém pode impor fronteiras à nossa fome». E Brahim, sem dúvida, tentou-o novamente. De facto, hoje as barcaças oferecem já a possibilidade para três tentativas.

Como o capital goza da mobilidade que se nega à mão de obra, as restrições à migração não o impedem de aceder à força de trabalho mundial, mas sendo ele a deslocar-se. Isto torna-se muito mais vantajoso. Se a mão-de-obra se deslocasse para o Norte teria de receber os salários próprios do Norte; se é o capital que se desloca para o Sul, paga os salários próprios do Sul.»

Luis González Carvajal, «El Hombre Roto por los Demonios de la Economia: El capitalismo neoliberal ante la moral cristiana», Madrid 2010

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