Fundamentos

A Água de Jesus

«As águas têm o seu curso, como as palavras: descem e grande parte se perde no mar e na terra. Jesus queria que as suas palavras fossem como águas correntes, ditas e pensadas para serem dispersas.»

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«A Jesus encantava-lhe a água. Fez-se baptizar por João o Baptista no rio Jordão; realiza o seu primeiro milagre em Caná da Galileia, onde converte a água em vinho; elege como apóstolos a pescadores, quanto até então o que simbolizava o cargo sagrado de dirigente era o pastor; caminha sobre as águas; anuncia à samaritana junto ao poço que quem beber a água que ele dará não voltará a sentir sede.

Jesus amava a água e por isso certamente amava o versículo de Isaías onde se faz o convite: «Vinde buscar água todos os sedentos, vinde ainda que não tenhais dinheiro» (Is 55,1). Era essa a água que ele anunciava, água para todos, água que é sempre uma bênção numa terra caracterizada pela seca. Jesus amava os versos de Isaías, no mesmo capítulo em que Deus afirma que as suas palavras são como chuva e neve que caem e não voltam vazias: «Assim será a palavra que sai da minha boca, não voltará a mim sem cumprir a minha vontade e levar a cabo a sua missão».

As águas têm o seu curso, como as palavras: descem e grande parte se perde no mar e na terra. Jesus queria que as suas palavras fossem como águas correntes, ditas e pensadas para serem dispersas. E quem sabe quantas se terão perdido, escutadas e logo esquecidas. Não quis escrever nada, nem teve secretários que as registassem – quem desejava conservar os seus ensinamentos tinha de os reter na memória. Não quis encerrar a água numa jaula. Ele sabia que as palavras pronunciadas valem mais do que as escritas, como a música escutada vale mais do que a partitura que a fixa. Usava a sua voz impetuosamente, como uma torrente que surge no meio do deserto segundo a bela imagem de Isaías (cf. Is 35,6-7), o maior poeta de Deus.

No Evangelho são recolhidas algumas gotas de um discurso que fluía como uma torrente. Esses escritos são comparáveis a cisternas que, segundo a sua capacidade, recolhem ao menos algumas gotas da chuva. Ignoramos o timbre da sua voz, nem sequer já existem aquele hebreu e aramaico que falou, as suas línguas maternas. Ainda assim, os Evangelhos foram suficientes para não esquecer as palavras de quem nada quis escrever nem deixar escrito mas que quis, sim, falar e viver segundo as palavras de uma misteriosa vontade de salvação.

Aquele que não tem fé nunca sacia a sua sede. Mas aquele que tem a graça da fé encontra-se comprometido com uma tarefa enorme: dar testemunho durante toda a sua vida dessa água que bebe. Fazendo-o, completa as páginas que os Evangelhos tiveram de deixar vazias. Fazendo-o, consegue que de novo brote à superfície a água que caiu fora das cisternas.»

Erri de Luca, «Hora Prima», Salamanca 2011, pág. 145ss

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