Fundamentos

Espera de Deus

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«Apenas esta espera, esta atenção (do escravo que, enquanto o seu amo se encontra numa festa, vela e escuta perto da porta para a abrir logo que oiça bater) pode obrigar o mestre a um tal excesso de ternura, servindo-lhe ele mesmo de comer. Quando o escravo se consumiu de cansaço no campo, o mestre ao regressar diz-lhe: “Prepara o meu repasto e serve-me”. E trata-o como escravo inútil que faz apenas o que se lhe ordena.

Bem certo que no domínio da acção é necessário fazer tudo o que é ordenado, à custa de não importa que grau de esforço, de cansaço e de sofrimento, porque aquele que desobedece não ama. Mas, depois disto, não se é mais do que um escravo inútil. É uma condição do amor, mas não é suficiente. O que força o mestre a fazer-se escravo do seu escravo, a amá-lo, não é nada disso; não é, ainda menos, uma busca que o escravo tivesse a temeridade de empreender por sua própria iniciativa; é unicamente a vigília, a espera e a atenção (…)

Não é apenas o amor a Deus que tem por substância a atenção. O amor ao próximo, que sabemos ser o mesmo amor, é feito da mesma substância. Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo que de homens capazes de lhes prestarem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz é uma coisa muito rara, muito difícil; é quase um milagre, é um milagre. Quase todos os que crêem ter esta capacidade não a têm. O calor, o ímpeto do coração, a piedade não são suficientes.

Na primeira lenda do Graal, diz-se que o Graal, pedra miraculosa que por virtude da hóstia consagrada sacia toda a fome, pertence a quem primeiramente disser ao guardião da pedra, rei paralisado em três quartos pela mais dolorosa ferida: “Qual é o teu tormento?”

A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar: “Qual é o teu tormento?” É saber que o infeliz existe, não como unidade numa colecção, não como um exemplar da categoria social etiquetada “infelizes”, mas enquanto homem exactamente semelhante a nós, que foi um dia atingido e marcado com uma marca inimitável pela infelicidade. Para isso é suficiente, mas indispensável, saber pousar sobre ele um certo olhar.

Este olhar é em primeiro lugar um olhar atento, em que a alma se esvazia de todo o conteúdo próprio para receber nela mesma o ser que olha tal como ele é, em toda a sua verdade. Disto só é capaz aquele que é capaz de atenção.»

Simone Weil, Espera de Deus, Lisboa 2008

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