«que o arcanjo que velava à cabeceira da Criança nos ensine a força da fraqueza, a doçura irresistível dos não violentos, a lei do perdão». Alguns poemas, um por dia, a caminho do Natal.
igreja de Saint Lazare Autun, França
Eram para ser sete, mas são oito
os poemas de José Augusto Mourão
presentes nesta gravação
Último Natal
Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.
Miguel Torga, Gaia, 24 de Dezembro de 1990 (in Poesia Completa vol. II, Lisboa 2007)
presépio
que um arcanjo ilumine o nosso caminho
ao menos uma vez!
que o arcanjo que velava à cabeceira da Criança
nos ensine a força da fraqueza,
a doçura irresistível dos não violentos,
a lei do perdão
que a Criança nos ensine
que o amor de adoração é sempre partilhado,
comunicativo
que o arcanjo ilumine o que nos faz
sempre partir: um rosto, a sede de justiça, o choro
ou a fome, a cegueira dos olhos
ou do coração,
Deus que nos moves para a adoração
e o louvor neste fim de tarde
e que alumias o mundo
José A. Mourão, ‘O Nome e a Forma’, Lisboa 2009
Um Rosto no Natal
Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais.
No dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
um rosto que falava quanto a voz calava
um rosto que chegava até junto de mim da nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava
em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra do natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministos e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz na indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei mais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia.
Ruy Belo, Todos os Poemas, Lisboa 2009
O Sonho e a Promessa
Deus, daqui se vê a cava e a distância
entre o que se sonha e a promessa;
é hoje que se escolhe passar o Jordão
e a indiferença
abre os nossos ouvidos aos barulhos do mundo
dá-nos a tua Palavra
para o tempo das viagens que acabam
e dos caminhos que começam cada dia
dá à nossa vida o rolar respiratório das vagas nas areias,
a deuterose que ritma e atiça o fogo doce da presença;
e que a palavra que está já na nossa boca
e no nosso coração se faça escuta
e reconhecimento do desejo do outro,
Deus do nosso partir e da nossa festa,
Deus libertador,
Pai, Filho e Espírito Santo
José Augusto Mourão, O Nome e a Forma, Lisboa 2009
I
ele é a Voz antes do Verbo,
a lâmpada antes da aurora
João é a figura-fulgor da vigilância crítica,
a testemunha do inegociável
que anuncia o Sol da justiça
e o orvalho da misericórdia
acorde a sua Voz inquieta
o deserto dos nossos desejos
‘Quem aquieta muito sinal é que ama pouco’
inquiete-nos a violência
que em surdina nos arma e nos esvazia
e que o Cordeiro converta
as endoenças em páscoas
e o silêncio em repiques
e as trevas em luz,
enfim a tristeza de alguns dias
em alegria da Ressurreição
II
o camponês conhece os seus campos
pelo que parecem, quer dizer pelo que prometem
assim o crente se deveria conhecer a si próprio
a partir da promessa que cresce no seu corpo,
da Visitação de Deus
e da inabitação do Espírito
o tempo agora é para adivinhar
o espaço potencial de Deus que vem vindo
e a comunidade o lugar de verificação
da presença do Espírito
que a Palavra prepare os nossos ouvidos
e a nossa boca para a confissão e o louvor
José Augusto Mourão, O Nome e a Forma, Lisboa 2009 (imagem: igreja de Saint Lazare Autun, França)
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