Fundamentos

Ainda pode parar e ser curada

Num artigo publicado na revista Communio, o historiador Pedro Braga Falcão apresenta-nos uma Carta do século I-II d.C., de Plínio o Jovem, governador do Ponto (actual Turquia), ao imperador Trajano, sobre os cristãos.Vale a pena ler:

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“É-me solene, senhor, escrever-te sobre tudo aquilo que me levanta dúvidas. Quem melhor do que tu me pode resolver as minhas hesitações ou instruir a minha ignorância? Nunca estive presente num julgamento de Cristãos, e portanto desconheço o que e até que ponto se costuma punir ou investigar. Nem hesitei pouco, sobre se deveria existir uma descriminação ao nível da idade, ou até que ponto os mais frágeis não diferem dos mais robustos, se o perdão deve ser dado aos que se arrependem, ou se, àquele que foi seguramente Cristão, não o ajudará ter deixado de o ser. Ou se o simples nome, se carecer de castigo por não ser criminoso, deve ser castigado em coerência com o seu nome.

Entretanto, em relação àqueles que me foram entregues como Cristãos, procedi deste modo: perguntei-lhes se eram Cristãos. Aos que confessaram, perguntei-lhes uma segunda e uma terceira vez, ameaçando-os de tortura; aos que perseveraram, mandei-os levar. Pois não tive qualquer dúvida, o que quer que fosse que eles confessassem, em certamente punir a pertinácia e a inflexível obstinação. Houve outros com o mesmo grau de demência, que, porque eram cidadãos romanos, inscrevi na lista dos que devem ser enviados a Roma.

À medida que isto ia sendo tratado, como normalmente acontece, difundindo-se a acusação, vários incidentes ocorreram. Foi-me colocado à frente um libelo anónimo contendo os nomes de muitos. Aqueles que negavam ser ou ter sido cristãos, pensei que poderiam ser libertos, ao repetirem depois de mim uma invocação aos deuses, ao dirigirem uma prece com incenso e vinho à tua imagem, que por esta razão mandei colocar junto das imagens das outras divindades, e, ainda mais, ao terem maldito Cristo, coisa que, segundo dizem, ninguém pode forçar um verdadeiro cristão a fazer.

Outros nomeados numa lista disseram que eram cristãos, e logo a seguir o negaram; foram, mas deixaram de o ser, alguns há três anos, outros há mais, outros ainda há mais de vinte anos. Todos estes também veneraram uma imagem tua e as estátuas dos deuses e maldisseram Cristo. Afirmavam, porém, que o resumo da sua culpa e do seu erro era costumarem-se reunir num dia combinado antes da luz nascer, entoar um cântico em versos alternados a Cristo como se fora um deus, e comprometerem-se com um voto (sacramentum), não para efeitos criminosos, mas para não cometerem furtos, roubos ou adultério, para não faltarem à sua palavra, nem se negarem a devolver dinheiro que lhes foi confiado, se assim pedissem.

Feito isto, diziam também que tinham por costume ir-se embora e voltar a reunir-se mais tarde para tomar alimento, algo aliás usual e inofensivo; deixaram, porém, de o fazer depois do teu édito, no qual, segundo as tuas instruções, proibi as sociedades privadas. Julguei necessário saber mais do que isto, e interroguei sob tortura duas escravas, que eram reputadas como ‘assistentes’ (ministrae), qual era a verdade. Não encontrei nada mais do que uma superstição errada e exagerada.

Assim, reunida a informação, apressei-me a consultar-te. Assemelhou-se-me que este assunto era digno de um parecer teu, especialmente tendo em conta o número dos que estão em risco. Muitas pessoas de todas as idades, de todas as classes sociais, de ambos os sexos, estão a ser chamadas a julgamento, e continuarão a ser chamadas. O contágio desta superstição já alastrou não só pelas cidades, mas também pelas povoações locais e pela zona rural, mas julgo que ainda pode parar e ser curada. Nota-se seguramente que os templos ainda há pouco quase abandonados voltaram a ser frequentados, e os ritos sagrados durante muito tempo abandonados voltaram a ter lugar, e (a carne) das vítimas dos sacrifícios está a venda por todo o lado, carne que ainda há pouco raramente encontrava um comprador. A partir disto é facilimo opinar que é possível emendar a multidão dos homens, se houver espaço para o arrependimento.

in Pedro Braga Falcão, “As Primeiras Comunidades Cristãs vistas por um Pagão”, Communio, n.º 2/2013

(na imagem: Plínio o Jovem, Catedral de Santa Maria Maior em Como, Itália)

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