Fundamentos

Carl Theodor Dreyer, «Jesús de Nazaret»

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Não gosto muito de apresentar uma obra disponível apenas em castelhano; mas, pela sua originalidade, «Jesús de Nazaret» de Carl Th. Dreyer merece uma apresentação. Para compensar, um excerto (em português).

Foi talvez há ano e meio, quando andava com as ideias de abrir de uma livraria especializada e dedicada a literatura cristã «e afins» (na curiosa expressão de um amigo), que recebi por empréstimo e recomendação um livro com o título «Jesús de Nazaret» de um autor chamado Carl Theodor Dreyer. Como não sou um amante de cinema (é uma das minhas limitações), também tiveram de me explicar que Carl Theodor Dreyer (1889-1968) foi um realizador de cinema dinamarquês. Li e pensei: «este tem de estar na livraria».

O livro, original de 1968 mas possivelmente elaborado a partir da década de 1930 (e publicado em Espanha pela Sígueme em 2009), tem como subtítulo «Um Guião Cinematográfico». Trata-se, nada menos, de um projecto/guião de um filme sobre a vida de Jesus, a partir dos Evangelhos, idealizado pelo realizador. Segundo a introdução à edição espanhola (elaborada por Pedro R. Panizo), tal projecto terá surgido na cabeça de Dreyer por volta dos anos 30, mas foi sobretudo em 1940, aquando da invasão alemã da Dinamarca e da consequente perseguição aos judeus (com a oposição dos dinamarqueses e em especial do seu rei, Christian X, que chegou a percorreu as ruas de Copenhaga a cavalo com uma estrela de David no casaco, em sinal de protesto), que a ideia de realizar um filme sobre Jesus adquiriu maior força em Carl Th. Dreyer.

pd_068O que surpreende nas 219 páginas que compõem o guião (na edição espanhola), é, não apenas a extrema humanidade de Jesus de Nazaré, como que uma «Vida de Jesus» tão comum nos ambientes protestantes europeus, mas o conhecimento profundo que o realizador demonstra do ambiente e do contexto judaico do I século, o que revela uma preocupação sincera (não novelística) por investigar o que se poderia saber – na década de 40 do século passado – sobre o tempo de Jesus. E acima de tudo, a preocupação que o realizador demonstra por não ferir, ou polemizar, a relação de Jesus com as autoridades judaicas do seu tempo (fariseus, escribas e sacerdotes), atribuindo a responsabilidade da sua morte mais às autoridades romanas – num claro paralelismo com a situação da Dinamarca ocupada e da perseguição nazi aos judeus.

Fica um excerto (a dramatização do episódio que escutaremos amanhã do Evangelho de João) de um livro, belíssimo, sobre Jesus – é pena apenas o não se encontrar disponível em português. Ah!, e mais um pormenor: o guião nunca chegou a ser levado ao cinema, por falta de financiamento. Enfim, coisas que aconteciam muito antigamente.

«Chegam os mestres da lei e os fariseus que vimos na porta de Nicanor e, com eles, os verdugos com a mulher. A multidão abre a passagem aos conselheiros do sumo-sacerdote, que empurram a mulher até Jesus. Ela, chorando intensamente, oculta o seu rosto com as mãos. Jesus interrompe o seu discurso e convida os conselheiros a exporem o seu assunto. Ele próprio senta-se a escutar.

Mestre da Lei I: “Conhecemos a tua bondade e sabemos que ensinas o caminho para encontrar a bondade do coração. Assim, vimos colocar-te uma questão simples. (Aponta para a mulher). Esta mulher foi surpreendida a cometer adultério. A lei de Moisés ordena-nos que seja lapidada. E tu, o que dizes?”

Se Jesus, que havia afirmado publicamente não ter vindo a abolir a lei mas a levá-la a cumprimento, se opõe à execução, desafia a lei de Moisés. E, se aprova a execução, perderá parte da sua popularidade, sobretudo entre as mulheres, que lhe estão agradecidas por as ter defendido sempre e por as ter situado num plano de igualdade com os homens. Quando o mestre da lei começa a acusar a mulher, com uma vara na mão, Jesus baixa-se e começa a desenhar na terra – cruzes, uma junto à outra. Continua a fazer isto inclusive depois do mestre da lei ter terminado de falar, como se não o tivesse escutado. Quando parece já que Jesus não tem intenção de responder, os mestres lançam-lhe várias perguntas, cujo propósito é enredá-lo numa discussão.

Mestre da Lei II: “Qual é a tua opinião?”

Mestre da Lei I: “Devemos lapidá-la ou não?”

Jesus não responde.

Fariseu I: “Ela arrastou a um homem para o pecado.”

Fariseu II: “E os pecados da carne são abomináveis aos olhos de Deus.”

Mestre da Lei I: “Julga-a tu.”

Mestre da Lei II: “E o que tu sentenciares será válido como lei”.

Jesus continua sem dar uma resposta. Os mestres da lei e os fariseus olham entre si e mostram a sua desaprovação. A jovem levantou a cabeça. Passa o seu olhar pelos mestres da lei, os fariseus, os verdugos e, finalmente, fixa-se em Jesus, o seu novo juiz, que parece ignorá-la e continua a desenhar na terra. Com impaciência, os mestres da lei tentam pressionar a Jesus para que dê uma resposta.

Mestre da Lei I: “Diz-nos, devemos lapidar a esta mulher?”

Mestre da Lei II: “O seu destino está nas tuas mãos”.

Finalmente, Jesus responde: “Aquele de entre vós que não tenha pecado, que atire a primeira pedra.” E, baixando-se de novo, continua a desenhar na terra.

Os mestres da lei e os faiseus ficam sem palavras. Sabem que Jesus tem um poder que lhe permite adivinhar o passado e o futuro das outras pessoas. Não são inocentes dos “pecados da carne”. Um a um afastam-se, começando pelos mais velhos. Jesus fica só. Não ofendeu a Moisés nem pôs em perigo a sua popularidade. Jesus levanta o olhar e, ao não ver a ninguém além da mulher, finge-se surpreendido.

Jesus: “Onde estão os teus acusadores?”

A mulher responde entre lágrimas: “Não sei”.

Jesus: “Ninguém te condenou?”

A mulher cai de joelhos esperando a sua condenação. Jesus diz-lhe: “Tampouco eu te condeno”.

Num primeiro momento, a jovem não consegue acreditar-se que tenha escapado a uma morte cruel e que esteja livre. Mas pela expressão do rosto de Jesus, dá-se conta por fim de tal facto e, aliviada, cai num choro ruidoso. Lágrimas de alegria enchem a sua cara. (…)

O choro da mulher escuta-se durante todo o tempo. Continuamos a vê-la, ajoelhada diante de Jesus. Está mais tranquila. Levanta-se lentamente e aproximar-se de Jesus. Baixando-se, beija a orla do seu manto e diz-lhe: “Obrigada”. Jesus, olhando-a com compaixão, responde-lhe: “Vai e não peques mais”. A mulher consente e, ajustanto o manto para que cubra quase todo o seu rosto, afasta-se. Jesus volta-se e termina o desenho que traçou na terra.

A cena termina com um primeiro plano da terra com as cruzes e o tronco desenhados, formando uma cruz.»

Carl Theodor Dreyer, «Jesús de Nazaret: un guión cinematográfico». Salamanca 2009, 255 págs. 

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