Fundamentos

Carlo Maria Martini

Passei uma boa parte da manhã a folher e ler um livro que recebi da PPC, de nome «Meditaciones sobre la Oración: Confesiones de un viejo cardenal» (original de 2009), tanto que me fez atrasar o trabalho e arrastar as pilhas de livros para arrumar. O autor é Carlo Maria Martini. E acabo de saber da sua morte, nascimento pascal para a fé cristã.

Não posso falar muito da sua vida e missão, desde biblista a bispo da diocese de Milão (parece que a maior do mundo) – noutros lugares se falará melhor. Impressionam-me os seus textos, muitos felizmente traduzidos em português, geralmente em torno a dois temas: a espiritualidade bíblica e a Igreja. Nuns e noutros, impressionante pela simplicidade da sua linguagem e pela franqueza (parúsia, em grego) com que o diz. Deixo um dos excertos que me impressionou, do livro referido: a apresentação que o próprio autor faz do livro:

«Cumpri 82 anos de vida e a doença de Parkinson, assim como os achaques da idade, recordam-mo constantemente. No que se refere à oração, no entanto, estou provavelmente a meio do caminho. Sinto que a minha oração deveria transformar-se, mas não sei muito bem de que modo; sinto uma certa resistência a dar um salto decisivo. Sei que, como Isaac, posso dizer: «Já sou velho, e ignoro o dia da minha morte» (Gn 27,2); mas o certo é que ainda não retirei as devidas conclusões.

Em todo o caso, trato de clarificar as ideias e de reflectir sobre este assunto. Creio que se pode falar de dois modos na oração de um ancião. Por um lado, pode considerar-se o ancião na sua progressiva debilidade e fragilidade, segundo a metafórica (e elegante) descrição de Qohélet (Ecl 12,1-8). Neste caso, o tema será a oração (invocada aqui pelas palavras ‘Recorda-te do teu criador’) daquele que é débil e frágil, de quem sente o peso da fadiga física e mental, e se cansa com facilidade.A saúde e a idade não nos permitem dedicar à oração os longos tempos que normalmente lhe dedicávamos noutros momentos: facilmente se adormece e é frequente fazê-lo na própria oração. Parece-me necessário, portanto, aprender a utilizar o pouco tempo de oração de que se possa dispor da melhor maneira possível (…)

Ora bem, a oração do ancião poderia ser considerada também como a oração de quem já alcançou um certa síntese interior entre a mensagem cristã e a vida, entre a fé e a quotidianeidade. Quais seriam, nesse caso, as características da oração? (…) Daqui poderiam emergir, espero, três aspectos: uma insistência na oração de agradecimento; uma olhada de carácter sintético sobre a própria vida e experiência; e, por fim, uma forma de oração mais contemplativa e afectiva, assim como um predomínio da oração vocal sobre a mental. (…)

Quando não existe o vigor físico e/ou mental, a oração será sobretudo de paciência e de abandono nas mãos de Deus, tomando como exemplo o próprio Jesus, que morre a dizer: ‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu Espírito’ (Lc 23,46). Os Salmos ensinam-nos a rezar: ‘Tu salvas aos que buscam na tua direita um refúgio contra os que os atacam? (Sal 16,7); ‘Nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu Espírito: Tu, o Deus Fiél, me libertarás’ (Sal 30,6); ‘O salvarei, porque em mim se confiou’ (Sal 90,14).

Quem alcançou uma certa idade está em condições de ter um certo olhar sintético sobre a sua própria vida, reconhecendo os dons de Deus, inclusive aqueles que lhe chegaram através de sofrimentos inevitáveis. Somos convidados, portanto, a uma leitura sapiencial da nossa história e da história do mundo. Felizes os que conseguem ler a sua vida como um dom de Deus, quem não se deixa levar por juizos negativos sobre os tempos presentes em comparação com o passado!

A terceira característica da oração do ancião deveria ser, como disse, um crescimento da oração vocal (e, portanto, uma diminuição da mental), juntamente com a simples contemplação, expressa com meios muito pobres. A oração mental diminui por causa da menor capacidade de concentração do ancião. Mas ao mesmo tempo deve aumentar a oração vocal. Ainda que algo adormecida ou despistada, a oração vocal é, em todo o caso, um meio para nos aproximar ao Deus Vivo.

O ideal seria chegar a contemplar, muito simplesmente, ao Deus que nos vê: contemplá-lo com amor ou, melhor ainda, pensar em Jesus como alguém que tem necessidade de nós para tornar pleno o seu louvor ao Pai. Para isso, o Espírito Santo será o nosso mestre interior. E a nós apenas nos resta segui-lo com docilidade.»

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@wpshower

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