Fundamentos

Emaús: quando ver é perder (de vista)

«O sinal mais antigo de que a Humanidade dispõe é reunir-se para partilhar o alimento; aí se faz uma experiência primitiva de solidariedade e de justiça; nessa ceia ninguém é excluído» (José A. Mourão).

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«A morte do outro é a coisa mais grave que pode acontecer, ainda que eu não participe nela. Essa é uma visão da santidade. Os gregos chamam-lhe ética. Um sofrimento surdo pesa sobre a fronte dos discípulos. O facto de se conversar sobre isso é já muito. Job, sentado diante da casa, nada compreende do que lhe acontece, nada sobre o que se possa ter dito sobre Deus. Há situações em que por companhia temos apenas o anjo das nossas ruminações, o luto a fazer pondo-nos a caminho. A sabedoria esmaga: “calai-vos, protegidos da vida com flores de retórica! Só temos a promessa que Deus nos acompanha neste caminho. Expliquemo-nos o que se passou. Quando se tem os olhos cheios de lágrimas é-se incapaz de acreditar na visão de um anjo. Emaús é o lugar de parte nenhuma, um lugar de errância, nada; Jerusalém estará em toda a parte. Entre Emaús e Jerusalém, o abismo de todo um mundo”.

Há uma religião de aparato, de fachada, que os novos media promovem e há a religião da experiência. A experiência do rosto do outro permite ler o traço da proximidade de Deus. Jesus é um vivo que passa entre os vivos em que nos vamos tornando. O corpo tornou-se colectivo. A partilha exige a prática da palavra, o apelo e o reenvio dos olhares, a multiplicidade dos sinais que exigem uma economia, no sentido em que a pensavam os Padres – um princípio orientador que regulava ao mesmo tempo a distância e a proximidade. O comércio das palavras e dos olhares não tem futuro se cada um se define por aquilo que compra e vende num comércio que exige que ele próprio se venda para se tornar um bom comprador e um bom vendedor do produto em que ele próprio se tornou.

Como ler as Escrituras: como a palavra de um Deus que se dirige aos mortos, ou como uma língua que se renova incessantemente para que a vida se diga? Lê-se numa das anáforas canónicas: “Verdadeiramente é o vosso Filho que está presente no meio de nós quando nos reunimos no seu amor e, como outrora aos discípulos de Emaús, nos explica o sentido da Escritura e nos reparte o pão da vida”. É o que acontece cada vez que nos reunimos (…)

O sinal mais antigo de que a Humanidade dispõe é reunir-se para partilhar o alimento; aí se faz uma experiência primitiva de solidariedade e de justiça; nessa ceia ninguém é excluído; Deus deve ser assim a vida que é como um pão através do qual Jesus mostra a humanidade reconciliada. Cada experiência de bondade no-lo torna mais próxima; cada experiência dum coração ardente o coloca diante dos nossos olhos. De regresso de Emaús todos os caminhos conduzem de novo ao lugar da esperança.

Reunimo-nos para sair daqui com o coração mais abrasado porque uma mesma confissão de fé nos juntou e nos envia. Sair daqui com os olhos mais abertos para a escuridão do mundo e dos actos que o iluminem. Para abrir a inteligência ao mistério da presença e dos encontros. Se o perdemos de vista é porque ainda não o vislumbramos à luz dos trabalhos e dos dias. Porque o nosso olhar está ainda fixado sobre este mundo. Aquele que vê apercebe-se do mistério da forma transcendente de Deus, forma que se mostra simultaneamente na imanência (pé, mão) e na transcendência (mancha de luz).

Que aquele que aparece como o evanescente, se aproxime de nós como aquele que vem em nome de Deus (Jo 12,13). Mostre-nos o Espírito a grande luz branca que designa o Cristo evanescente. Cure-nos aquele que caminha connosco da cegueira do visível e da imanência. Que a fracção do pão nos una numa mesma comunidade de mesa e de bênção.»

José Augusto Mourão, «Quem Vigia o Vento não Semeia», Lisboa 2012

One Comment

  1. Elizabeth Pepes
    Maio 4, 2014

    Achei esse texto precioso e de uma profundidade espiritual que me
    tocou imensamente. Eu o recebo, como o perfume de Cristo,
    em forma de palavras. Deus abencoe o autor!

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