“A luz de Damasco é um grito/Para a ovelha que regressa/A luz de Damasco é um tombar de trigo, um cair/Do grão – cega tanto como os olhos/De um homem perseguido quando se volta/Para nós”
E chegamos ao fim de mais um Curso Online Fundamentos, o terceiro, desta vez dedicado a 6 testemunhos. Para concluir, Daniel Faria.
Na recente edição da sua Poesia Completa, da responsabilidade da Assírio&Alvim, pode ler-se este resumo biográfico: «Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, em 1971. Frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa, no Porto, obtendo a licenciatura em 1996. O gosto pela poesia e pela expressão poética levou-o a obter uma segunda licenciatura, em Estudos Portugueses, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Faleceu em 1999, com apenas 33 anos, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga. Deixou-nos, apesar do seu desaparecimento prematuro, um notável legado poético.»
Uma poesia alimentada pela procura do Mistério de Deus. Através de densos versos, a Poesia de Daniel Faria continua a ser inspiração para numerosos leitores, cristãos e teólogos. E, se quisermos procurar algo comum entre os 6 testemunhos percorridos esta semana, além do Mistério que procuravam e que os alimentava, estará também a experiência das Fronteiras da Fé: nas fronteiras do não-dizer da Fé, do Silêncio (Teresa de Lisieux), do Cristianismo fora das Igrejas, até ao Martírio (Simone Weil e D. Bonhoeffer), do Cristianismo nas fronteiras sociais do excluído (Padre Américo e Abel Varzim). Agora, talvez o regresso ao Silêncio.
(…)
Entro. Conheço a minha casa. É mansa
Sinto-lhe a respiração. Dorme sobre os meus pés
À chuva
Estende o patamar aos primeiros rios
Mora nas margens para ser a mais matinal
Das nascentes – a escuta
Junto na concha das mãos as palavras
Iniciais. Posso dar de beber
Aos que caem
Aos que encostam o ouvido à orla
Marítima. À bainha da mãe
Posso juntar as margens. Ou soltar a água
E correr
(…)
Mas tu existes.
Os dias somam ruína à ruína
E o a vir multiplicará
A miséria.
Apodreço não adubando a terra
E cada dia somado a cada hora
Não completa o tempo.
Sei que existes e multiplicarás
A tua falta.
Somarei a tua ausência à minha escuta
E tu redobrarás a minha vida.
(…)
Zaqueu:
A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez.
(…)
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar
(…)
A luz de Damasco é um grito
Para a ovelha que regressa
A luz de Damasco é um tombar de trigo, um cair
Do grão – cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós
A luz de Damasco golpeia. É circuncisão
Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza
Das pedras que um mártir junta com as mãos
Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume
Da oração de um mártir ao morrer
(…)
Vimos a pedra vazia no interior da terra
A manhã. Nós não tocámos a luz
Inesperada. Pensámos
Que já o sono sendo eterno te afastara
E que farol que foste
Agora onda após onda, brasa extinta, naufragava
Nunca mais, pensámos, dormirias na proa
E quase desaprendêramos a guiar o barco
Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa
Seria ver multiplicar-se
A nossa fome como o peixe e como o pão
Chegámos a terra porém e esperavas-nos
Os pés furados como conchas sobre a areia
E sentámo-nos em redor para comer
Ver mais: Daniel Faria, Poesia, Lisboa 2012
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