«”Roubou na feira de Margaride, já está presa há mais de um ano”. E o pequenino Manuel vai desfiando contas de amarguras que não sente, enquanto o adormeço num leito de roupa lavada»
É impossível ter crescido no Porto (como foi o meu caso) e nunca ter ouvido falar da personalidade de Américo Monteiro de Aguiar, mais conhecido como Padre Américo. Nascido em 1887 em Penafiel, natural de uma família na altura com algumas possibilidades económicas, frequentou o liceu e trabalhou entre 1906 e 1923 em Moçambique. Regressando a Portugal, ingressou no seminário de Coimbra, após uma passagem pelos Franciscanos, e após ter visto o seu pedido de admissão recusado pelo bispo do Porto. Após a ordenação, foi professor no seminário de Coimbra, até lhe ter sido confiada, em 1932, a direcção da obra Sopa dos Pobres.
A partir daí, iniciou uma vida intensa de acção social, essencialmente junto das crianças de rua, que lhe chamavam “Pai Américo”. Fundou a Casa do Gaiato, as Casas do Património dos Pobres, entre outras obras. Pelo meio, foi publicando algumas obras, dedicadas essencialmente a expor o projecto educativo da Casa do Gaiato, considerado na altura como revolucionário em muitos aspectos, e que suscitou numerosas críticas e oposições. Morreu em 1956 em Valongo, vítima de um acidente de viação. Pelo meio deixou milhares de páginas escritas, entre os periódicos e os livros: textos de uma retórica belíssima e de uma experiência vivida, a explicar que “as crianças, para quem peço, não são minhas: são vossas, são o resultado da vossa sociedade.” Os seguintes excertos são retirados do livro «Padre Américo, páginas escolhidas e documentário fotográfico», Porto 2008.
(…)
«Ontem apresentaram-se quatro. Já tinham chegado há dias, mas, como eu estivesse ausente, eles comiam na cozinha do forno e dormiam no palheiro, à espera. Quatro. Três de Santo Tirso e um fugido a um circo, que não se sabe de onde é! O orador era um dos de Santo Tirso. Não tinha papas na língua. A causa dele e dos outros era muito bem defendida. Depois falei eu. Quatro – nem pensar. Se fosse um, talvez se desse um jeito; assim, não.
Comeram o caldo. Dei a cada um sua moeda de prata e com isso os despedi. À noitinha, sinto bater à porta do meu escritório. Era um dos desgrenhados. Cá estou! É o do circo. É o que não tem ninguém. Traz a moeda de prata que antes lhe dera e entregou-ma! “Os de Santo Tirso”, disse ele, “sempre têm por lá alguma família; eu é que não.” Esta foi a doutrina do pequenino concílio que eles houveram, entre si, a uns tanto quilómetros da nossa Aldeia. Os “Pàrias” a fazerem doutrina. O “esterco” a ensinar: “Sim. Vai tu que não tens ninguém”. Oh, Homens das Esquerdas e das Direitas, encontrai-vos aqui e chorai!»
(…)
«Chegou-nos um pequeno que parece andar na casa dos dez. Ao que apurei, ele tem a mãe na cadeia, ia comer o rancho às grades e mendigava nas redondezas. Como estamos em maré de piões e há setenta deles a bailar cá em Casa, o Manuel, que assim se chama o novo gaiato, compreendeu num relance que a vida aqui não é para penas e começou a jogar. Na tarde desse mesmo dia, foi visto mais os do campo a comparticipar dos seus trabalhos e infinita alegria. Tem uns olhos cheios de expressão. Narra a tragédia da vida sem saber medir, pela idade que tem, a altura da sua desgraça.
-“Andava um homem mais nós, mas agora não quer saber”. Era um grupo de pedintes de feiras. A prisão da mulher afastou o homem e ficou o pequenino preso ao amor da mãe, que é o derradeiro a quebrar. Ela reparte do seu minguado rancho, nem se lhe dava de abrir as veias, que o amor tem mais força do que a morte. O ferro das grades não impede que ela se aproxime do fruto da sua fraqueza. Eu não me atrevo a chamar-lhe fruto do seu pecado; que o digam os mais.
– “Roubou na feira de Margaride, já está presa há mais de um ano”. E o pequenino Manuel vai desfiando contas de amarguras que não sente, enquanto o adormeço num leito de roupa lavada. Soube mais: que o pai da condenada é um proprietário do Minho, que não quis receber a filha por lhe ter caído uma nódoa. Se o pai soubesse perdoar, tanto bastaria para lavar a primeira nódoa e não teríamos hoje a enlameada. Quer-me parecer que o verdadeiro pecado vem do acto do pai!»
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