«Não preciso de acreditar na existência de um Deus para reconhecer que a ideia de Deus é bela e,continuando ateu,dar-me perfeitamente bem com essa ideia».Uma crónica de Manuel A. Pina, sobre a ideia de…Deus.
«Um dia destes ouvi o físico João Magueijo, em entrevista à Antena 2 a propósito do seu recente livro O grande inquisidor, uma biografia de Ettore Majorana, físico italiano desaparecido misteriosamente durante uma viagem de barco em 1938 (ter-se-á suicidado?, terá sido raptado?, ter-se-á recolhido a um convento da Calábria aterrado com as previsíveis consequências da descoberta, anos antes, da fusão nuclear?), dizer que, mesmo que improvavelmente a ciência demonstrasse um dia a existência de Deus, ele continuaria a não acreditar, pois que a fé, ao contrário da ciência, é uma questão do indivíduo consigo mesmo.
A entrevista despertou o meu interesse não só por Ettore Majorana e pelo livro de João Magueijo mas pelo próprio João Magueijo. Também eu, se alguma das ciências, a física por exemplo (a Santíssima Trindade, três pessoas e uma ao mesmo tempo, pode bem ser uma realidade quântica…), viesse a provar a existência de Deus, não me tornaria decerto crente por causa disso.
Porque também não sou «crente» da ciência. É minha convicção que cepticismo, incluindo o cepticismo em relação à própria ciência, está no âmago do espírito científico.A história da ciência – e a ciência não existe fora da História – abunda de acontecimentos que recomendam uma tal atitude.
E, no entanto, sendo ateu, tenho-me às vezes por religioso no sentido mais estrito e literal da palavra, que pouco tem que ver com divindades ou crenças e, principalmente, com igrejas. Li teólogos como Nicolau de Cusa e místicos como «Meister» Eckhart, condenado pela Igreja como herege, com o mesmo proveito com que li Sade ou Bataille; as histórias das religiões de Eliade e até de Bleeker-Widengren ou o Livro de Job e o Evangelho de S. João só não são meus livros de cabeceira porque não tenho livros de cabeceira; a minha cabeça e o meu coração estão repletos de personagens dos mitos gregos, celtas, xintoístas; a Attente de Dieu de Simone Weil comove-me tanto quanto a Viagem ao fim da noite, de Céline, e S. João da Cruz e Frei Luis de León tanto quanto Bukovski ou Marina Tsvetáeva.
Uma vez ouvi Stephen Weinberg dizer que o facto de nos preocuparmos com a origem do Universo talvez signifique que não somos afinal inteiramente miseráveis enquanto espécie. Ora essa preocupação manifesta-se tanto nas especulações da ciência acerca do que estará para lá do «tempo de Planck» ou antes do Big Bang como no Fiat Lux bíblico e nas cosmogonias de todas as religiões.
A ideia de um Ser criando ex nihilo tudo o que existe é simples e bela, e a beleza é ela própria uma forma de verdade. Infelizmente verdade poética e verdade científica nem sempre são compatíveis, mesmo que a ciência seja um território inesgotável para quem procure a verdade da beleza.
Não preciso de acreditar na existência de um Deus para reconhecer que a ideia de Deus é bela e, continuando ateu, dar-me perfeitamente bem com essa ideia. (A existência de Deus seria, aliás, uma boa partida para muitos que se dizem crentes). E estou convencido de que sem a beleza da ideia de Deus, tão corrompida pelo proselitismo religioso, o mundo seria decerto um lugar ainda pior do que é.
Se a ciência viesse um dia a verificar a realidade física, na origem de tudo, de um ponto quântico de volume nulo e densidade e temperatura infinitas e chamasse a tal singularidade de Deus («chamo-lhe Tao porque não sei o Seu nome», diz o taoísta), a ideia desse Deus – um Deus imanente e não transcendente, natural e não sobrenatural, ou seja, tudo menos um Deus – poderia ser igualmente bela mas não seria decerto coisa capaz de tornar alguém melhor.»
Manuel António Pina, in Noticias Magazine, 23/10/2011
Manuel António Pina, «Crónica, Saudade da Literatura», Lisboa 2013
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