Fundamentos

Fé Discreta

«Um toque de ceticismo, ironia e abandono à razão crítica, como correção permanente de qualquer tendência para o entusiasmo religioso superficial, é um requisito». Por Tomás Halík:

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«Não, peço desculpa, não posso mesmo ir’, respondo em tom apologético aos dois jovens que me vieram convidar para um megaencontro de jovens cristãos, organizado por dois dos atuais ‘novos movimentos’ da Igreja católica. ‘Entusiasmo juvenil por Cristo’, organizado a uma escala massiva, com gritos de ‘viva, irmãos e irmãs’ vindos do palco, e braços no ar e olhos esgazeados? Não, essa não é a ‘minha chávena de chá’, como dizem os ingleses. Nunca me senti à vontade entre entusiastas religiosos.

Há alguns anos, durante a visita do Papa, observei um particular ‘pastor da juventude’ que, enquanto, muito sério, dirigia as suas ‘ovelhas’, fazia-as cantar em uníssono um slogan em verso que incluía as palavras: ‘Alegremo-nos todos no Senhor, o nosso Papá vem do Vaticano – Hurra!’ O meu sentimento, nesse momento, foi mais ou menos que o de Joseph K, quando a faca do carniceiro lhe trespassa o coração na pedreira de Strahov, no fim do romance ‘O Processo’, de Kafka: ‘Pensei que a vergonha que senti me sobreviveria’.

Eu próprio cheguei à fé lentamente, através de um processo de dúvida: para mim, é difícil imaginar ser subitamente contagiado pela piedade coletiva nalgum ajuntamento de massas com estandartes em que se lê JESUS AMA-TE, e líderes de claques ostentando sorrisos insuportavelmente fixos. Além disso, aquando da minha conversão, os estádios e os circos ainda serviam a sua finalidade original e não eram utilizados para palhaçadas religiosas. Como é natural, eu respeito o facto de que há aqueles que sentem necessidade de serem esmagados no meio de uma multidão de pessoas com a mesma mentalidade, para fortalecer a sua fé. Seria mais provável que a minha fé se perdesse no meio de tão grande ajuntamento.

Um toque de ceticismo, ironia e abandono à razão crítica, como correção permanente de qualquer tendência para o entusiasmo religioso superficial, é, em meu entender, não só uma condição necessária para a saúde espiritual e mental, mas também um pré-requisito, se não quisermos abafar a verdadeira voz de Deus com os nossos guinchos e gritos: isto recorda-me aquele tipo da história bem conhecida, que olha no meio da escuridão para um gato preto dentro de uma sala completamente vazia e grita, prematuramente, ‘Apanhei-o, apanhei-o!’

‘Eu seria desagradavelmente irónico, estragando-vos a festa’, expliquei àqueles dois jovens, tão simpáticos. ‘Sou um cético, por natureza, e aquilo que provavelmente me fez chegar à fé foi a minha determinação em ser consistente. Talvez tenha sido isso que me fez ser cético em relação ao meu próprio ceticismo.’

Não deveria eu ter sido mais cético em relação ao meu ceticismo frente a tais eventos?, interroguei-me, depois de eles terem partido, desapontados. E se eu, sem o saber, invejo de facto a juvenil simplicidade da sua piedade, que possivelmente conta mais do que a minha aos olhos do Senhor? (…)

O certo é que aqueles que gerem a indústria da simplificação religiosa em grande escala nunca oferecem essa prometida ‘fase seguinte’ porque eles próprios nunca a alcançaram e ela é completamente estranha paa eles; sempre que se deparam com os aspetos ‘mais complexos’ da fé, pensam que são obra do diabo. A religião superficial ou pouco profunda só nos enterra cada vez mais no ladaçal ou na aridez do deserto, não permitindo que nos façamos ao largo. Os que querem procurar o Deus vivo e seguir de verdade Cristo devem ter a coragem de aprender a nadar em águas profundas, não nos baixios. Deus é o mar profundo; não pode ser encontrado nos baixios (…)

Quando alguém é iniciado à fé, precisa que lhe digam claramente que está a ser iniciado num mundo de mistério e profundidade, que Jesus não é ‘um amigo com quem eles podem conversar’, e que Deus não é um papá representado pelos devidos papás eclesiásticos, ao qual todos nós cantamos repetidas vezes ‘Hurra!’ e ‘Aleluia, Senhor Jesus!’ – ‘Vamos lá, meninos, vocês podem fazer melhor do que isso: o mais alto possível e todos em uníssono!’ (…)

Meus queridos e jovens amigos, talvez um dia eu ainda venha a aceitar o vosso convite. Mas será que vocês vão aguentar ter-me convosco, sendo eu incapaz de sentir a proximidade de Deus no júbilo, nos slogans e nos braços erguidos, sentindo-a apenas nesse casto ‘talvez’, nessa ‘pouca fé’? Esse ‘talvez’ não é uma expressão da minha falta de confiança em Deus, mas uma falta de confiança em mim.

A minha preocupação é que as nossas certezas, demasiado grandes, demasiado ruidosas e demasiado humanas, corram o risco de obscurecer aquilo que é verdadeiramente impressionante: o Mistério, que gosta de falar através do seu silêncio e de se revelar através do seu ocultamento, e que esconde a sua grandeza naquilo que é pequeno e que mal se nota. Depois de termos sido objeto de chacota para todos, a sobriedade e a moderação têm vindo a baixar visivelmente em várias áreas da vida, incluindo a religião. Contudo, não me parece que Deus as tenha abandonado.»

Tomás Halík, «A Noite do Confessor: A fé cristã numa era de incerteza», Lisboa 2014 

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